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Extradição e as garantias do devido processo legal

A interconexão das jurisdições na luta contra o crime transnacional tem revelado a importância do respeito aos direitos fundamentais.

19/07/2019 às 10h17, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras 

Uma nova lei extradicional em debate em Hong Kong tem provocado enormes protestos populares. As mobilizações começaram em abril e reúnem um número cada vez maior de pessoas, entre cidadãos locais e estrangeiros residentes.

Parte da população da região autônoma especial chinesa teme que a nova lei sirva para minar o modelo de “um país, dois sistemas” vigente desde 1997, quando a Pérola do Oriente foi restituída à República Popular da China (RPC).

Hong Kong tornou-se um domínio britânico pelo Tratado de Nanquim (Nánjīng), de 1842. Este é um dos famosos tratados iníquos ou desiguais (unequal treaties) que potências europeias impuseram a nações da Ásia, entre elas a China, a Coreia e o Japão, nos séculos 19 e 20.

A nova lei de Hong Kong facilitaria a extradição a outros países, inclusive à própria China continental, o que pode pôr em risco direitos fundamentais de acusados submetidos a processo penal em tribunais da RPC. A proteção que a relativa soberania de Hong Kong garante sobre assuntos de justiça e cooperação internacional seria debilitada.

O projeto denominado Fugitive Offenders and Mutual Legal Assistance in Criminal Matters Legislation (Amendment) Bill 2019 altera o art. 503 da Ordenação sobre Criminosos Foragidos (Fugitive Offenders Ordinance), que atualmente exige um tratado como base de qualquer extradição (no extradition without treaty), como é da tradição dos países de Common law. Sendo um antigo território britânico, Hong Kong ainda aplica esse princípio, não admitindo extradições por promessa de reciprocidade. A nova lei permitiria acordos casuísticos com terceiros países, para viabilizar extradições quando o objeto do pedido for um dos 37 crimes listados na legislação.

Organizações não governamentais internacionais e locais e vários juristas manifestam preocupação com a situação do estado de Direito na China.

Aqui também. Em maio de 2019, o STF negou dois pedidos de extradição a Pequim por receio de violação a direitos humanos (EXT 1426 e 1428). Nos casos de Mi Xu e Ming Yao, o ministro Celso de Mello votou pelo indeferimento dos pedidos por receio de “o ordenamento jurídico do Estado requerente não se revelar capaz de assegurar aos réus, em juízo criminal, a garantia plena de um julgamento imparcial, justo, regular e independente”.

Para ele, o STF deve “velar, de modo intransigente, pela intangibilidade dos direitos fundamentais de qualquer pessoa, de qualquer súdito estrangeiro”.

Casos da Venezuela e da Turquia, já definidos ou ainda em apreciação pelo STF, levantam preocupações semelhantes, já que os dois países são hoje ditaduras. Nicolás Maduro e Recep Erdoğan cassaram juízes e membros do Ministério Público e suspenderam garantias fundamentais. Em 2012, a Venezuela retirou-se da Convenção Americana de Direitos Humanos, e a Turquia enfrenta acusações de descumprimento reiterado da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Na EXT 1578, a República da Turquia pretende a extradição de Ali Spahi, turco de nascimento e brasileiro naturalizado, que foi preso no Brasil a pedido da Interpol. Spahi seria suspeito de integrar o Hizmet, uma organização apontada por Ancara como terrorista. O processo de Spahi ainda não foi decidido pelo STF. Espera-se que seja indeferido, seja pela nacionalidade brasileira (ele é naturalizado), seja pelos riscos de violação ao devido processo legal e desrespeito a suas garantias fundamentais na Turquia. Além disso, trata-se aparentemente de crime político.

Já na PPE 760, a República Bolivariana da Venezuela requereu a prisão para extradição de George Owen Kew Prince. Esta pessoa chegou a ser presa em 2015 no Brasil em atendimento à pretensão de Caracas. Porém, o pedido foi depois arquivado pelo STF por questões formais relativas ao descumprimento de prazo pelo Estado requerente. Na discussão sobre a preventiva, a 1ª Turma da Corte debateu o tema do direito a um julgamento justo e chegou a deferir prisão domiciliar ao procurado.

Na ocasião, o relator, ministro Edson Fachin, acentuou que:

“A necessidade e importância da cooperação penal internacional cede, e deve sempre ceder, à necessária proteção dos direitos mais básicos da pessoa humana, dentre os quais se insere inapelavelmente o direito a ser julgado, no Estado requerente, por juiz isento, imparcial e sob a égide do devido processo legal”.

Com esses três julgados, que se somam a outros precedentes do STF e à jurisprudência de tribunais estrangeiros e cortes supranacionais, constrói-se um sentimento, cada vez mais denso, de que mais importante do que proteger indivíduos a partir de sua nacionalidade (o Brasil, por exemplo, não extradita nacionais) é garantir ampla proteção à pessoa humana contra persecuções ilegais ou julgamentos injustos, não importando raça, a etnia ou a origem nacional do extraditando.

Na prática extradicional brasileira, este é um vetor constitucional, dada a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Estado brasileiro (art. 4º, II, CF), mas também é um compromisso convencional, quando se tem em mira o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984).

A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trasnacional (2000), conhecida como Convenção de Palermo, não perdeu este tema de vista, como se lê no seu art. 16:

Art. 16. Extradição

§13. Qualquer pessoa que seja objeto de um processo devido a qualquer das infrações às quais se aplica o presente Artigo terá garantido um tratamento eqüitativo em todas as fases do processo, incluindo o gozo de todos os direitos e garantias previstos no direito interno do Estado Parte em cujo território se encontra.

§14. Nenhuma disposição da presente Convenção deverá ser interpretada no sentido de que impõe uma obrigação de extraditar a um Estado Parte requerido, se existirem sérias razões para supor que o pedido foi apresentado com a finalidade de perseguir ou punir uma pessoa em razão do seu sexo, raça, religião, nacionalidade, origem étnica ou opiniões políticas, ou que a satisfação daquele pedido provocaria um prejuízo a essa pessoa por alguma destas razões.”

Nos casos ativos de extradição de interesse do Brasil, a questão do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana também já se coloca como premissa básica a ser respeitada para que o Estado brasileiro possa capturar homicidas, estupradores, traficantes ou corruptos que cometam crimes aqui e fujam para o exterior.

Na prática cooperacional recente, tivemos casos como os de Henrique Pizzolato (condenado por corrupção e lavagem de dinheiro), Marcelo Bauer (condenado por homicídio qualificado), Colombo Ruggeri Filho (acusado de narcotráfico) e Ronald Van Coolwijk (condenado por narcotráfico internacional), cujas extradições da Europa para o Brasil ou foram negadas (caso Bauer) ou foram de dificílima consumação (casos Pizzolato, Ruggeri Filho e Van Coolwijk) devido a questões atinentes a suposta ou concreta violação de garantias fundamentais no nosso País.

A interconexão das jurisdições na luta contra o crime transnacional tem revelado a importância do respeito aos direitos fundamentais previstos nas constituições e nos tratados internacionais como premissa garantidora da eficiência dos Estados na proteção da vítimas de crimes graves em todo o globo.

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