Vladimir Aras

O avanço do marco regulatório da criptoeconomia e suas repercussões no campo penal

O Parecer 40 da CVM não é o primeiro ato jurídico sobre criptoativos.

14/03/2023 às 09h03, Por Vladimir Aras

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Foto: Reprodução/Portal do Bitcoin

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou em 11/10/2022 o Parecer de Orientação 40, que consolida o entendimento da autarquia sobre as normas aplicáveis aos criptoativos que forem considerados valores mobiliários.

O Parecer, que foi aprovado pelo colegiado da CVM, deixa claro que nem todo criptoativo será considerado um valor mobiliário nos termos da Lei 6.385/1976. Este diploma dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e criou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Adicionalmente, o Parecer 40 procura identificar os limites de atuação do órgão regulador federal, “indicando as possíveis formas de normatizar, fiscalizar, supervisionar e disciplinar agentes de mercado.”

O Parecer 40 da CVM não é o primeiro ato jurídico sobre criptoativos. A Receita Federal já havia aprovado a Instrução Normativa 1.888/2019, que instituiu e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Receita Federal do Brasil (RFB).

Nota CVM

Destaco dois trechos relevantes da nota publicada pela CVM sobre o Parecer 40, o primeiro sobre a caracterização de criptoativos como valores mobiliários; e o segundo sobre a taxonomia dos criptoativos.

“Caracterização de criptoativos como valores mobiliários:

Ainda que os criptoativos não estejam, expressamente, incluídos entre os valores mobiliários citados nos incisos do art. 2º da Lei 6.385, o Parecer de Orientação 40 indica que os agentes de mercado devem analisar as características de cada criptoativo, com o objetivo de determinar se é valor mobiliário, o que ocorre quando:

• é a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei 6.385 e/ou previstos na Lei 14.430 (i.e., certificados de recebíveis em geral); ou

• se enquadra no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei 6.385, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.”

Em segundo lugar, adotando uma abordagem funcional, o Parecer 40 também promove o enquadramento dos tokens em uma taxonomia provisória de três categorias, que orienta o seu tratamento jurídico pela CVM. São eles:

  • Token de Pagamento (cryptocurrency ou payment token): busca replicar as funções de moeda, notadamente de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor;
  • Token de Utilidade (utility token): utilizado para adquirir ou acessar determinados produtos ou serviços; e
  • Token referenciado a ativo (asset-backed token): representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis. São exemplos os “security tokens”, as stablecoins, os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de “tokenização”.

Note que, para a CVM, o token referenciado a ativo pode ou não ser um valor mobiliário. Caso não seja, questões jurídico-penais diversas poderão ocorrer.

Observe-se ainda que as três categorias acima estipuladas “não são exclusivas ou estanques”. Assim, “um único criptoativo pode se enquadrar em uma ou mais categorias, a depender das funções que desempenha e dos direitos a ele associados.”

Objetivos

O Parecer 40 tem três objetivos principais, o primeiro econômico-financeiro, quando visa a “ garantir maior previsibilidade e segurança, bem como de fomentar ambiente favorável ao desenvolvimento dos criptoativos, com integridade e com aderência a princípios constitucionais e legais relevantes”.

O entendimento informe retratado no Parecer 40 também favorece a proteção do investidor e da poupança popular.

A opinião consolidada no Parecer 40 também tem uma repercussão penal, em harmonia com a Recomendação 15 do GAFI. O texto contribui para a prevenção e a repressão à lavagem de dinheiro, à corrupção, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa; e fortalece o controle da evasão fiscal.

Consequências

Uma primeira consequência deste Parecer no campo processual penal é reforçar a opção persecutória feita pelo MPF, que vinha lançando mão do artigo 7º da Lei 7.492/1986 para imputação de crime contra o SFN quando houvesse uma oferta ao público de contratos de investimentos em criptoativos. A pena para este delito é de 2 a 8 anos de reclusão, sem prejuízo da consumação do delito de operação clandestina de instituição financeira, previsto no art. 16 da mesma lei.

Exemplos dessa prática processual do MPF e da Polícia Federal são as operações Madoff (Espírito Santos) e Kryptos (Rio de Janeiro).

Como agora, também para a CVM, um criptoativo pode encaixar-se “no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei 6.385/1976, na medida em que seja [um] contrato de investimento coletivo”, o emprego do artigo 7º da Lei 7.492/1986 passa a ser fora de dúvida, ao menos para os tokens deste tipo.

Deve, então, encerrar-se a controvérsia sobre se ofertas públicas de contratos de investimento em criptoativos seriam pirâmides classificáveis apenas na infração penal de menor potencial ofensivo denominada “pichardismo”, prevista no artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (Lei de Economia Popular). Embora cause prejuízos bilionários a investidores incautos, este crime tem pena de 6 meses a 2 anos de detenção, e multa, e é julgado pelos Juizados Especiais Criminais, com possibilidade de transação penal e suspensão condicional do processo.

Fica também superada, em consequência, a discussão sobre a competência para o julgamento de pirâmides de criptoativos. Os crimes contra a economia popular são de competência estadual, conforme a súmula 498 do STF. Já os crimes contra o SFN são de competência federal, nos temos do artigo 109, VI, da CF, combinado com o artigo 26 da Lei 7.492/1986.

Demais questionamentos

Eventual imputação de lavagem de dinheiro continua a ser possível, tendo em vista que o binômio criminoso delimitado pelo artigo 1º da Lei 9.613/1998 pode-se configurar na presença de qualquer infração penal antecedente que produza ativos. Basta que o autor do crime antecedente (autolavagem) ou o prestador de serviço terceirizado (heterolavagem) conjugue um dos verbos do artigo 1º, notadamente as condutas de “ocultar” ou “dissimular” certos atributos jurídico-penais de bens, direitos e valores produzidos por aquele crime.

Fica em aberto, porém, a questão dos criptoativos que não sejam enquadráveis no conceito dúplice de valores mobiliários divisado pela CVM. Na hipótese de tais criptoativos não serem considerados valores mobiliários, afasta-se a incidência do artigo 7º da Lei 7.492/1986 em proveito do artigo 2º, IX, da Lei 6.385/1976.

Volta-se, então – mas apenas nestes casos –, a considerar a imputação, agora perante a Justiça Estadual, do crime de pirâmide financeira (“pichardismo”), do artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951, que se apresenta em conflito aparente com o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal.

Em tal cenário de confronto, por motivos que ainda precisam ser melhor esclarecidos, o STJ vem decidindo que prevalece o crime contra a economia popular, por sobre o delito de estelionato, ainda que haja uma ou mais de uma vítima identificável.

Para a 6ª Turma do STJ, a mera identificação de algumas das vítimas da conduta não autoriza a responsabilização do agente pela prática de estelionato. Seria de se dar incidência apenas ao delito de pirâmide, previsto como crime contra a economia popular.

Operação Faraó

RECURSO EM HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO FARAÓ. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. ESTELIONATO. BIS IN IDEM. OCORRÊNCIA. TRANCAMENTO DO PROCESSO QUANTO AOS AVENTADOS CRIMES DE ESTELIONATO. RECURSO PROVIDO.

  1. A controvérsia em análise cinge-se à configuração de crime único e à ocorrência de bis in idem, diante da imputação, ao ora recorrente, da incursão nos arts. 171 do Código Penal e 2º, IX, da Lei n. 1.521/1951.
  2. Importante distinção entre os aspectos material e processual do ne bis in idem reside nos efeitos e no momento em que se opera essa regra. Sob a ótica da proibição de dupla persecução penal, a garantia em tela impede a formação, a continuação ou a sobrevivência da relação jurídica processual, enquanto que a proibição da dupla punição impossibilita tão somente que alguém seja, efetivamente, punido em duplicidade, ou que tenha o mesmo fato, elemento ou circunstância considerados mais de uma vez para se definir a sanção criminal.
  3. No caso em análise, vê-se que a descrição das circunstâncias fáticas que permeiam os ilícitos imputados ao recorrente crime contra a economia popular e estelionatos são semelhantes, pois mencionam a prática de “golpe” em que ele e os coacusados induziriam as vítimas em erro, mediante a promessa de ganhos financeiros muito elevados, com o intuito de levá-las a investir em suposta empresa voltada a realizar apostas em eventos esportivos. A diferença está na identificação dos ofendidos nos estelionatos.
  4. Em situação similar, esta Corte Superior já decidiu que, nas hipóteses de crime contra a economia popular por pirâmide financeira, a identificação de algumas das vítimas não enseja a responsabilização penal do agente pela prática de estelionato. Precedentes.
  5. Recurso provido para, diante do bis in idem identificado na hipótese, determinar o trancamento do processo, em relação ao ora recorrente, no que atine aos crimes de estelionato (fatos 4º ao 29º da denúncia).

(STJ, 6ª Turma, RHC 132.655/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 28/09/2021).

5ª Turma do STJ

A 5ª Turma do STJ, por sua vez, numa abordagem mais coerente, tendo em vista a diversidade dos bens jurídicos lesados e sua relevância na sociedade digital, tem entendido que é possível o concurso material entre o estelionato (art. 171 do CP) e o crime de pirâmide (art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951).

Foi o que se deu no julgamento do caso Vik Traders, tendo a 5ª Turma da Corte mantido a ação penal por crime contra a economia popular e por estelionato, infrações imputadas simultaneamente a um grupo acusado de operar esquema de pirâmide financeira envolvendo investimentos em criptomoedas. Observe-se que, segundo o posicionamento do MPF e da CVM, tais fatos enquadra-se-iam, em verdade, no crime contra o SFN previsto no artigo 7º da Lei 7.492/1986.

Voto do Ministro Ribeiro Dantas (STJ)

“Paralelamente ao ato voltado contra o público em geral (site para angariar vítimas), verificam-se condutas autônomas de aliciadores voltadas contra o patrimônio particular de vítimas específicas”, apontou o ministro ao reconhecer a possibilidade, em tese, do concurso de crimes entre o delito contra a economia popular e o estelionato.

(STJ, 5ª Turma, RHC 161.635/DF, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 15/09/2022).

O caso ficou assim ementado:

CASO VIK TRADERS

HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR E ESTELIONATO. NE BIS IN IDEM. AVERIGUAÇÃO DO CASO CONCRETO. AGENCIAMENTO PARTICULARIZADO DE VÍTIMAS. FRAUDE CONTRA O PATRIMÔNIO DE VÍTIMA DETERMINADA. ESTELIONATO. IDENTIFICAÇÃO GENÉRICA DE PARTICULARES LESADOS, SEM INDIVIDUALIZAÇÃO DA CONDUTA QUE ATINGIU CADA UMA DAS VÍTIMAS INDIVIDUALMENTE. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. CONCURSO DE CRIMES. POSSIBILIDADE. ABSORÇÃO. AÇÃO PENAL PARCIALMENTE TRANCADA. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO EM PARTE.

  1. Configura crime contra a economia popular “obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (‘bola de neve’, ‘cadeias’, ‘pichardismo’ e quaisquer outros equivalentes)”, nos termos do art. 2o, IX, da Lei 1.521/1951.
  2. Já o crime de estelionato (art. 171, caput, do CP) é dirigido contra o patrimônio individual.
  3. Como regra, a pirâmide financeira ou a criação de site na internet sob o falso pretexto de investimento em criptomoedas subsume ao delito do art. 2o, IX, da Lei 1.521/1951.
  4. Assim, narrados casos de prejuízos genéricos por infinidade de usuários, sem verificação de conduta transcendente, mas mera cooptação pelo site eletrônico, ainda que possível identificar algumas vítimas, verifica-se apenas o crime contra a economia popular. Porém, havendo o aliciamento particularizado, mediante induzimento e convencimento, de vítimas determinadas, através de emissários dos agentes criminosos principais, torna-se possível falar, em tese, em concurso de crimes entre o delito contra a economia popular e o estelionato. Isto porque, paralelamente ao ato voltado contra o público em geral (sítio eletrônico para angariar vítimas), verificam-se condutas autônomas de aliciadores voltadas contra o patrimônio particular de vítimas específicas, cuja adesão ao site (instrumento para a fraude) se revela apenas como exaurimento do estelionato.
  5. Recurso em habeas corpus parcialmente provido para determinar o trancamento do feito em relação a alguns delitos de estelionato cometidos contra vítimas que não tiveram as fraudes devidamente particularizadas na denúncia, mantidos os demais termos da denúncia pelos crimes de estelionato remanescentes, associação criminosa e infração contra a economia popular.

(STJ, 5ª Turma, RHC 161.635/DF, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 15/09/2022).

Como se vê, apesar do avanço propiciado pelo Parecer 40, a insegurança jurídica ainda estará presente no campo da criptodelinquência até que o Congresso Nacional resolva as inconsistências de nossa legislação.

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