Cultura

Gil de Jonas de Miné da Barra e o Beco do Bagaço: um trovador de Pé de Serra a caminho do cordel

Divulgador da cultura regional, Gil não perde oportunidade para incentivar as pessoas a adentrar ao mundo do cordel, da poesia e do repente.

24/02/2024 às 17h58, Por Acorda Cidade

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Foto: Arquivo Pessoal

Por Valdomiro Silva

Ele se considera um modesto declamador e trovador amador. Mas quem o conhece mais de perto, sabe que, também, carrega nas veias o cordel. Gildemário Carvalho de Lima, 53 anos, filho de Jonas Pereira Lima e Maria Hilda de Carvalho Lima, é natural da vizinha Pé de Serra, cidade onde acontece uma grande festa no Sábado de Aleluia, e radicado em Feira de Santana, onde vive há 30 anos. Um dos pioneiros – e bem sucedidos – comerciantes do ramo de equipamentos para academias de musculação no estado da Bahia, ele é incentivador da cultura popular nordestina, promovendo anualmente um concorrido festival de violeiros em sua terra natal.

Foto: Arquivo Pessoal

O aspirante a cordelista que tambem joga futebol – dizem seus amigos que ele tem pouca técnica, mas chuta forte e é esforçado – gosta de ser chamado e prefere assinar seus escritos com o extenso apelido Gil de Jonas de Miné da Barra. Jonas é seu pai, um longevo que já chegou aos 94 anos e segue firme; Miné foi o avô. Barra, a comunidade, onde nasceu Miné, ninguém sabe cravar ao certo sua localização. Alguns dizem ter surgido em Riachão, outros defendem que teria sido em Feira. Para Gildemário, o lugarejo nasceu em Tanquinho.

Gil de Jonas pretende registrar, em folheto, algumas das suas criações. No repertório, dentre vários escritos que elabora desde os seus tempos de adolescência, o destaque por si próprio eleito é a homenagem a um dos vários becos existentes em Pé de Serra, o do Bagaço, bem mais carismático e popular que os concorrentes Beco das Almas, Beco do Riachão, entre outros.

O sugestivo nome, bem peculiar, é em virtude de aquela via pública, que marcou várias gerações, ser uma verdadeira “bagaceira”, especialmente em seus tempos de glória, com as múltiplas atividades desenvolvidas no local, entre as quais irresistíveis bares, um ou outro bordel, ali presentes em seus tempos áureos, nos anos 1980 e 1990.

Além dos versos sobre o tradicional Beco do Bagaço (veja algumas estrofes, abaixo), Gil de Jonas pretende levar para o seu futuro livreto de cordel uma versão pessoal sobre algo muito presente no cotidiano, o preconceito com que as pessoas se veem quando chamadas ou apelidadas de macaco. Em linha radicalmente contrária ao senso comum, diz que a ofensa, em verdade – se ela existe -, atinge ao animal, não ao homem. E, então, o autor narra a indignação do primata. “É ele (o macaco) que não admite tal comparação”, diz, com voz alta e olhar fixo, dando a entender que concorda com a reação daquele que teria sido nosso ancestral.

Em suas pouco mais de duas dezenas de trabalhos, o neto de Miné também guarda, ainda em rabiscos e longe de estar finalizado, um relato, baseado em fato supostamente real, ocorrido no interior de Sergipe. Trata-se da revolta de um jovem que, não conseguindo adquirir ingresso para entrar na festa, atirou uma pedra ao interior do espaço. Para seu castigo, arrependimento e desespero, em meio ao enorme movimento de pessoas, acertou a figura mais importante do seio familiar: a própria mãe.

Admirador da arte de cordelistas como Chico Pedrosa, Amazan, João Ramos e Gessiê Quirino, entre outros, o trovador pedeserrensse foi amigo pessoal do falecido Caboquinho, serrinhense do distrito Bela Vista, que viveu quase toda a vida em Feira, considerado maior dos violeiros da Bahia. Também é fã e amigo do repentista e sambador Bule Bule. E elogia as revelações da cantoria nos últimos anos, Delvany (filho do veterano repentista Davi Ferreira) e Nadinho (de Riachão do Jacuípe).

No último dos oito festivais de violeiros que já realizou, sempre no mês de agosto, com apoio da Prefeitura de Pé de Serra e do comércio local, como faz questão de reconhecer, Gil de Jonas homenageou aos consagrados Caboquinho (in memorian) e Bule-Bule, mas também aos artistas locais André da Pedra Bonita e Zé de Bispo. Outros nomes vão ser lembrados no evento deste 2024, que ele pretende realizar.

Divulgador da cultura regional, Gil não perde oportunidade para incentivar as pessoas a adentrar ao mundo do cordel, da poesia e do repente. Dentre os que lhe ouviram e passaram a simpatizantes dessas artes, a esposa Nayara. Com orgulho, diz que sua amada passou a prestigiar e curtir versos a partir do esforço dele em convidar aos amigos que façam uma visita a estas divinas e encantadoras artes populares. Segundo ele, quem se dispõe a aprecia-las é imediatamente impactado e seduzido.

Mas estas manifestações culturais nordestinas, analisa e lamenta Gil de Jonas, estão em decadência.

“Certamente devido a falta de interesse das pessoas que se encontram no comando dos órgãos e dos projetos”, critica. Em alguns momentos, ele salienta, “vemos que algumas pessoas ainda têm até mesmo vergonha de expressar a sua simpatia pelo repente, há um certo preconceito, assim como um dia ocorreu com o forró, hoje valorizado mesmo depois dos festejos de São João”. Quando escreve um cordel ou declama, Gil diz sentir “realização interior”. É algo, acrescenta, capaz de conduzi-lo “de volta à infância”.

Trechos do cordel “Beco do Bagaço”

Na outra casa vizinha

Também existia um bar:

Tinha o bar de Vilmar,

Tem a venda de Zequinha.

Na boate de Pipinha

Tinha cada mulherão,

Meninas que davam o show,

Muita gente namorou

Lá no Beco do Bagaço

**

Era ponto de transporte

Para o povo do Licuri

Ou então pra o Cambuí.

Achar um carro era sorte

Fosse pra o sul ou pra o norte

O transporte era cansaço.

A viagem era completa,

Pois tinha muita bicicleta

Lá no Beco do Bagaço

**

Não tenho nenhum retrato;

Eu só guardei na memória,

Mas quem vier outra história

Pode trazer que eu relato.

Posso descrever o fato

Sem parecer João sem braço.

Sigo fazendo homenagens

Pra vários personagens

Lá no Beco do Bagaço

**

Seu moreno era um tio;

Vendia fígado com tomate

No fundo tinha uma boate

Até hoje desconfio.

Agdemário também abriu

Um bar sem ter embaraço.

Eu falando, acredite.

Perto de Luis, Piroca e Judite

Lá no Beco do Bagaço

**

Eram muito reservados.

Existia um bem discreto:

O exemplo é o bar de veto,

Um dos mais frequentados.

Tira gosto, ovos pintados,

E pinga com um amigaço.

Depois ia atrás de quenga

Ao lado do bar de Benga

Lá no Beco do Bagaço

Autor: Gil de Jonas de Miné da Barra

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  1. Sensacional!
    Me lembro de quase todos os personagens desse cordel! Meu pai, de vez em quando, tomava uma no bar de Veto. Seu Zequinha de Vito é sogro do meu primo, Cal de Gabé. Já joguei “sinuque” no bar de Moreno…
    Ainda me lembro das saídas da rua para roça, pelo Beco do Bagaço as sábados. Tinha uma serraria bem rústica no final da rua, quando começava a estrada de chão, antes da casa velha de Antônio Fogueteiro. A gente morava na Lagoa do Poço e todo sabada ia pra rua.
    Lamento que poucas pessoas tem a sua disposição para levar adiante essa cultura.

    Que coisa linda essa forma de se conhecer as pessoas: Gil (de Jonas (de Miné (da Barra))); Jó (de Zizi (de João (da Lagoa do Poço))); Nequinha (de Ovídio (do Caldeirão do Rio))…

    A importância dos antepassados na apresentacao pessoal. Muitas vezes, não importava quem você era. Mas sim de quem você era filho ou neto.

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