Greve PM

Salvador, cidade sitiada

A atuação federal no campo da segurança pública pode ocorrer de três formas mais brandas: mediante a utilização da Polícia Federal para a investigação de certos delitos, de crimes de repercussão internacional ou interestadual, ou de graves violações de direitos humanos, de acordo com o artigo 144 , §1º, inciso I, da Constituição, e com a Lei da Repressão Uniforme (Lei n. 10.446/2002), sem prejuízo da responsabilidade das Polícias estaduais; e, noutros casos, mediante autorização do Ministro da Justiça.

Por Vladimir Aras

 

  cem anos, em 1912, uma crise política pôs frente a frente o Exército brasileiro e a Polícia Militar baiana. O cenário foi Salvador. Um dos palcos, a Assembleia Legislativa, ocupada pelos policiais, com alguns sinais invertidos.
Às vésperas do Carnaval de 2012, o enredo se repete. A paralisação da Polícia Militar na Bahia alcançou proporções preocupantes. Ontem (6/fev), o Centro Administrativo (CAB) foi cercado pelo Exército. A Assembleia Legislativa continua ocupada por PMs amotinados. O Tribunal Regional Eleitoral, a Procuradoria-Geral de Justiça, o Tribunal de Justiça e a Justiça Federal, que funcionam na área, tiveram suas atividades prejudicadas. O Ministério Público Federal fechou mais cedo. A tensão continua.
Militares não podem fazer greve. Aliás, o que alguns deles vêm fazendo aqui nos últimos dias não é greve; é algo grave, que depõe contra a história da quase bicentenária PM baiana, criada por D. Pedro I, em 17 de fevereiro de 1825.
O artigo 142, §3º, inciso IV, da Constituição, determina que “ao militar são proibidas a sindicalização e a greve”. Esta disposição é aplicável aos militares das Forças Armadas, mas também à Polícia Militar, que estes são forças auxiliares e reserva do Exército (art. 144, §6º, CF).
Além disso, o art. 42 da CF diz que “Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. Não dúvida, portanto, de que membros da PM e dos BM não podem fazer greve. Deveriam poder? Este é um tema a discutir.
Diante da proibição de paralisação coletiva, quando PMs interrompem suas atividades, o que pode acontecer? Do ponto de vista jurídico, militares estaduais em greve podem cometer o crime de motim, previsto no artigo 149 do Código Penal Militar (Decreto-lei 1.001/69), o crime de insubordinação (arts. 163 e 165 do CPM), ou o delito de deserção (art. 187 do CPM), ou estes delitos em concurso, todos de competência da Justiça Militar estadual (art. 109, IV, CF, a contrario sensu), apurados em ações penais promovidas por promotores de Justiça do respectivo Estado.
A Lei 12.191/2010 anistiou policiais e bombeiros militares dos Estados do Rio Grande do Norte, Bahia, Roraima, Tocantins, Pernambuco, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e Distrito Federal que participaram de movimentos reivindicatórios de 1997 a 2010. Depois veio a Lei 12.505/2011, de anistia para os militares de Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe. Todo mundo foi perdoado, e muitas ações penais na Justiça militar foram arquivadas por extinção da punibilidade (art. 123, II, do Código Penal Militar, correspondente ao art. 107, II, do Código Penal comum). Em certo momento isto pareceu acertado, porque as condições de trabalho dos policiais brasileiros são realmente intoleráveis, e muitos foram levados aos protestos por desespero.
Porém, o perdão aos amotinados de ontem serviu de estímulo aos exageros de agora. Houve encapuzados que tomaram ônibus de assalto, expulsaram passageiros e usaram-nos para bloquear artérias vitais para a cidade de Salvador, como a Av. Luiz Viana Filho e a Av. Otávio Mangabeira, como vimos na quinta-feira (2/fev). Pessoas foram aterrorizadas em pontos de ônibus por tiros dados a esmo. O terror aumentou com boatos que foram espalhados em toda a parte. A cidade foi sitiada em vários pontos, e o Dia de Iemanjá, pleno de azul e branco, foi tingido de vermelho em vários bairros da capital, com homicídios de moradores de rua e latrocínios. Ontem (6/fev), por falta de segurança, as escolas particulares e as municipais não iniciaram o ano letivo. passa de uma centena o número de mortos na Região Metropolitana de Salvador em uma semana de greve.
Como era de se esperar, a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) foi convocada para policiar várias cidades da Bahia. A presença de forças federais nas ruas é legal. Não se trata de estado de sítio nem de estado de defesa, situações excepcionais previstas nos arts. 136 e 137 da Constituição, nem de intervenção federal nos termos do art. 34, III, da CF (“para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública“). O quadro a que assistimos é preocupante, mas não o suficiente para o implemento desses estados excepcionais, que fogem à plena normalidade democrática.
A atuação federal no campo da segurança pública pode ocorrer de três formas mais brandas:
mediante a utilização da Polícia Federal para a investigação de certos delitos, de crimes de repercussão internacional ou interestadual, ou de graves violações de direitos humanos, de acordo com o artigo 144 , §1º, inciso I, da Constituição, e com a Lei da Repressão Uniforme (Lei n. 10.446/2002), sem prejuízo da responsabilidade das Polícias estaduais; e, noutros casos, mediante autorização do Ministro da Justiça.
com a convocação da Força Nacional de Segurança Pública, para o restabelecimento da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, com base na Lei Federal 11.473/07, o Decreto 5.289/2004 e a Portaria do MJ 394/2008, em atividades de policiamento ostensivo e investigação criminal.
pela implantação de uma operação de GLOGarantia da Lei e da Ordem, com o apoio das Forças Armadas, por iniciativa de qualquer dos poderes constitucionais, de acordo com diretrizes baixadas pela Presidência da República, nos termos da Lei Complementar 97/99, que regulamenta o art. 142 da Constituição:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Todas essas formas de “intervenção” baseiam-se na cooperação federativa no âmbito da segurança pública. No caso da FNSP, os policiais convocados para compô-la têm direito a diárias pagas pela União, sendo prevista indenização em caso de invalidez, a ser custeada pelo Fundo Nacional de Segurança Pública. Nas ações da FNSP, coordenação conjunta da União e do Estado, devendo ser observados, entre outros princípios, o respeito aos direitos individuais e coletivos, inclusive à integridade moral das pessoas; e uso moderado e proporcional da força (art. 3º da Lei 11.473/97).
Daí a existência de interesse federal, no sentido do art. 109, inciso IV, da Constituição, pois a FNSP é um serviço prestado pela União. Tanto é assim que o art. 7º do Decreto 5.289/2004, estabelece que: “Art. 7º. Caso algum servidor militar mobilizado venha a responder a inquérito policial ou a processo judicial por sua atuação efetiva em operações da Força Nacional de Segurança Pública, poderá ser ele representado judicialmente pela Advocacia-Geral da União, nos termos do art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.028, de 12 de abril de 1995″.
Quanto à GLO, a participação da União é ainda mais intensa. Segundo o artigo 9º, §2º, do Decreto 5.289/2004, “Em caso de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, na forma da legislação específica, o Presidente da República poderá determinar ao Ministério da Justiça que coloque à disposição do Ministério da Defesa os recursos materiais da Força Nacional de Segurança Pública.”. Em outras palavras, se uma operação de GLO é implantada, o comando da FNSP é transferido para as Forças Armadas.
As atividades do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para prover a segurança pública são reguladas pelo artigo 15, §2º, da Lei Complementar 97/99, podendo ocorrer depois de esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, assim reconhecidos pelo Chefe do Executivo. As forças federais devem ser empregadas de forma circunscrita no espaço e limitada no tempo.
Em tal cenário, o artigo 15, §5º, da Lei Complementar 97/99 determina que o controle operacional dos órgãos de segurança pública estaduais passe ao oficial militar encarregado da OGLO, o qual “deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins”, o que inclui, no primeiro caso, as Polícias estaduais e federais, a Guarda Municipal, a Defesa Civil e, no segundo caso, o Ministério Público e a Defensoria Pública, assim como as Advocacias de Estado.
Este o quadro jurídico que legitima a presença das Forças Armadas no policiamento urbano de uma cidade brasileira.
Mas o Direito não é suficiente para superar esta grave crise. Grevistas e o Governo estão num impasse. Os baixíssimos salários da PM são apenas um elemento dessa equação. A estratégia do Exército brasileiro (EB) é estrangular o movimento paredista, cujos líderes estão concentrados na Assembleia Legislativa da Bahia, onde usam familiares, mulheres e crianças como escudos. Felizmente, o Ministério Público estadual agiu rapidamente e conseguiu uma decisão judicial liminar para que as crianças fossem retiradas do local, o que em parte ocorreu. Os serviços de fornecimento de energia elétrica e água do edifício do Legislativo estadual foram interrompidos. O cerco montado por militares do Exército, PMs não amotinados e policiais federais impede o ingresso de água, alimentos e medicamentos no “quartel general” dos grevistas. Ninguém entra para que todos saiam.
Muitas vezes, a Polícia Militar age com violência contra suspeitos de crimes e reprime agressivamente movimentos sociais. Esperemos que agora o Exército e a FNSP não repitam essa lamentável escrita.
Espera-se também que o Governo, o Exército e os amotinados tenham sabedoria para negociar e ceder. A luta pelo aumento dos salários dos PMs é uma justa reivindicação que vem ocorrendo anos e tende a se repetir em todo o Brasil. Uma das propostas em mesa é a PEC 300, que pretende estabelecer um piso nacional para a categoria, tendo por parâmetro os vencimentos dos policiais militares do Distrito Federal, tidos como os mais bem remunerados do País.
Outra medida importante é a desmilitarização da Polícia Militar e, quem sabe, a unificação desta com a Polícia Civil, para instituição de uma carreira policial, objeto da PEC 102. A criação de um órgão federal de policiamento ostensivo para substituir a FNSP também deve ser discutida. Estes temas são polêmicos e encontram resistência no Congresso e nas próprias corporações. Além disso, as duas PECs contêm propostas questionáveis no âmbito do controle externo da Polícia e na questão do monopólio da investigação criminal.
Enquanto o debate nacional sobre estes pontos não é possível, é preciso assegurar os direitos dos cidadãos baianos (arts. 5º, 6º e 144 da CF), que foram postos em pânico em virtude de ações criminosas de alguns desses grevistas, e em razão dos arrastões e inúmeros saques e homicídios que ocorreram nas maiores cidades do Estado, por ações de delinquentes encorajados pelo deficit de policiamento.
Provocar medo nas pessoas não é algo que legitima uma greve. O apoio deve vir da percepção da justiça dos pleitos, não do pânico coletivo. Para tudo uma receita, um “modo de fazer”.
Com a presença do EB e da FNSP nas ruas de SSA e a decretação da OGLO, o caos deve ser superado. Sem sangue, espera-se. E com redobrado cuidado. Vampiros estão por . E todo o Brasil está acompanhando, QSL?
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