A televisão e o estupro à ConstituiçãoA televisão e o estupro à ConstituiçãoA televisão e o estupro à ConstituiçãoA televisão e o estupro à Constituição
Égritante a deficiêncianaimplementação dos direitoshumanos no Brasil. Se, de um lado, o Supremo Tribunal Federal, em decisão do ministroCelso de Mello (HC 113.548/DF, de maio/2012), assegurou a um literalmenteinquestionável (sic) “contraventor” o direitoconstitucionalaosilêncio, paranãofalarà CPI no CongressoNacional, namesmasemana as redessociais (re)descobriram um vídeopostado no YouTube, no qualumarepórterda TV Bandeirantes de Salvador execra, enxovalha e humilha um supostoestuprador, quefoiconstrangido a falarnuma“entrevista”para um programapolicialdaemissora (vejaaqui). Quaseumacena de Abu Ghraib.
Entreosdoismundos, o do supostocontraventor e o do alegadocriminosopé-de-chinelo, háumadistânciaincomensurável, a começarpelosternosbemcortados do primeiroprisioneiro, pelorespeitoàsuapresunção de inocência e àgarantia contra a autoincriminação e àpresença de seuadvogadoduranteseulegítimointerrogatório, com efetivoexercíciodadefesatécnica. Do outrolado, um cidadãoaosmulambos, desdentado e espancado e de novo surradonafrenteda câmerada TV. Seuinterrogatóriomidiáticofoiilegítimona forma e no conteúdo, umavezquefoiretiradodacela e algemadoparaserexpostocomomercadorianavitrinetelevisiva.
A distânciaentreelesmede-sepelosmilhões de reais e pelosmilhares de amigos e compadres de um, e pelamiséria do outro. Miséria em seumaisamplosentido, de um sujeito de direitos a quemfaltatudo. Ali, nadelegacia de Itapoã e natelada TV, nãohavia CPI, nãotinhaMinistérioPúblico, nãohaviaDefensorianemadvogadodativo. Nãotinhajuiz. O Supremo Tribunal Federal nãoviu, nemficousabendodaexistência de Paulo Sérgio Silva Sousa. SóhaviaumaPolíciaconivente e repórteres em busca de audiênciafácil. “O sistemaébruto”, é o lemadesse show de horroresdatelevisão, do mesmotipo de outrostantosprogramasqueexploram um direito penal midiático, quetripudiamsobre a miséria e a ignorância, queesmagamospequenos e bajulamos fortes.
O flagrantenãofoi o do supostoestuproque o presobaiano de 18 anosteriacometido, massim o daviolação de seusdireitosconstitucionaisàpresunção de inocência, aosilêncio e àintegridade moral. Osculpadossãomuitos, a começartalvez do próprio Paulo César (se cometeumesmo o estupro de quelheacusam), passandoseguramentepelaPolícia (quepermitiu o deboche e a humilhação), atéchegaraosexecutoresdessavergonhosapáginada TV (queganharam com ela). Iriapara o Top Five daprópriaemissora com louvor, massemdireito a risadas.
A gravidade do fato, cujosresponsáveisaindaserãoidentificados, éaindamaiorporque a “entrevista”foi“concedida” com o presoalgemado. A SúmulaVinculante 11 do Supremo Tribunal Federal diztextualmenteque:
“Sóélícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundadoreceio de fugaou de perigoàintegridadefísicaprópriaoualheia, porparte do presoou de terceiros, justificada a excepcionalidadeporescrito, sob pena de responsabilidadedisciplinar, civil e penal do agenteoudaautoridade e de nulidadedaprisãoou do atoprocessual a que se refere, semprejuízodaresponsabilidade civil do Estado.”
A SV 11 está em harmonia com a Diretriz 33 dasRegrasMínimasdasNaçõesUnidassobreTratamento de Delinqüentes, reconhecidas em Genebra, em 1955, e aprovadaspeloConselhoEconômico e Social daONU (Resolução 663 C I (XXIV), de 1957):
33. A sujeição a instrumentostaiscomoalgemas, correntes, ferros e coletes de forçanuncadeveseraplicadacomosanção. Maisainda, correntes e ferrosnãodevemserusadoscomoinstrumentos de coação. Quaisqueroutrosinstrumentos de coaçãosópodemserutilizadosnasseguintescircunstâncias:
a) Como medida de precaução contra umaevasãoduranteumatransferência,desdequesejamretirados logo que o reclusocompareçaperanteumaautoridade judicial ouadministrativa;
b) Porrazõesmédicas sob indicação do médico;
c) Porordem do diretor, depois de se teremesgotadotodososoutrosmeios de dominar o recluso, a fim de o impedir de causarprejuízo a sipróprioou a outrosou de causarestragosmateriais; nestescasos o diretordeveconsultar o médico com urgência e apresentarrelatórioàautoridadeadministrativa superior.
Nemistobastouparaimpedir a práticaabusiva contra aquelesuspeito e contra outrostantosquevieram antes dele. Um dos maisimportantesprincípiosrepublicanosé a dignidadedapessoahumana (art. 1º, III, da CF). O art. 5º damesmaConstituiçãodizqueninguém (ninguém!) serásubmetido a torturanem a tratamentodesumanooudegradante. Ademais, peloinciso X do art. 5º daCarta, sãoinvioláveis a intimidade, a vidaprivada, a honra e a imagemdaspessoas. E, paraquenãorestedúvida, o art. 5º, incisoXLIX, da CF asseguraespecificamenteaospresos o respeitoàintegridadefísica e moral.
Poroutrolado, a mesmaConstituiçãoquegarante as liberdades de imprensa e de manifestação do pensamentoestatui em seuartigo 221, inciso IV, que a produção e a programaçãodasemissoras de rádio e televisãoatenderão, entreoutrosprincípios, aorespeitoaosvaloreséticos e sociaisdapessoa e dafamília.
A Convenção Americana de DireitosHumanos (Pacto de São Joséda Costa Rica, de 1969) estabelece no seuartigo 5º o direitoàintegridadepessoal, asseveraque“Todapessoatemdireito a que se respeitesuaintegridadefísica, psíquica e moral” e determinaque“Ninguémdevesersubmetido a torturas, nem a penasoutratoscruéis, desumanosoudegradantes“, declarandoaindaque”Todapessoaprivada de liberdadedevesertratada com o respeitodevidoàdignidadeinerenteaoserhumano”. O art. 11, n. 1, do mesmoPactodizquetodapessoatemdireitoaorespeitodasuahonra e aoreconhecimento de suadignidade. E acrescentaqueninguémpodeserobjeto de ingerênciasarbitráriasouabusivas em suavidaprivadanem de ofensasilegaisàsuahonraoureputação.
Namesmalinha, o Pacto de Nova IorquesobreDireitosCivis e Políticos, de 1966, estatui, em seu art. 10, n. 1, que“Todapessoaprivada de sualiberdadedeverásertratada com humanidade e respeitoàdignidadeinerenteàpessoahumana”.
O quadronormativoéamplo e claro. A visãoque a opiniãopúblicatemdasituaçãotambém o éoucomeça a ser. A reaçãoque se seguiuàdivulgação do vídeodareportagemda Band nasredessociais, especialmente o Twitter e o Facebook, foiacachapante, o quemotivouprovidências do MinistérioPúblico Federal, do MinistérioPúblico do Estadoda Bahia e daDefensoriaPúblicoEstadual. O programapolicial em questãonãoé o primeironem o último do gênero. Na Bahia, promotores de Justiçaformalizaramhá tempos um termo de ajustamento de conduta (TAC) com algumasdasemissoraslocaisquetransmitemtais shows policiais, a fim de reduzirosabusos. O MPFtemadotadomedidasjudiciais contra taisespetáculoscircences (um “coliseutelevisivo”, comoresumiu um amigo advogado) em outrosEstados do País. Foiassim, porexemplonestescasos:
Não me venham com a “estória” de que o MinistérioPúblicodeveriacuidar de coisas“maisimportantes”. Primeiramente: istoémuitoimportante, poisdizrespeitoaosdireitoshumanos, direitos de todosnós. Em segundolugar, émissãodessainstituiçãofazerexatamenteisto o quevemsendofeito: responsabilizarosvioladores de direitosfundamentais, cumprindo a obrigaçãoquelhefoientreguepeloartigo 129, inciso II, daConstituição (“II – zelarpeloefetivorespeito dos PoderesPúblicos e dos serviços de relevânciapúblicaaosdireitosasseguradosnestaConstituição, promovendo as medidasnecessárias a suagarantia“), dispositivoestequelhedá a função de ombudsman nacional.
Nem me digamqueistoéconversa de “defensor de bandidos”. EsterótulonãocalhaaoMinistérioPúbliconem me cabe. Bastalermeus posts paraverquantasvezescritiqueiaquimesmo o hipergarantismoàbrasileira, o laxismo penal, o coitadismoqueimpera em certascortes, as teoriaskatchangasquearrumamparaconsagrar a impunidade. Prezo um direito criminal verdadeiramentegarantista: punição do criminososemexcesso; proteçãodasociedadesemdeficiência. Assim, se háumainstituiçãoque se pode se orgulhar de estarsempreaoladodasvítimas no processo penal, estainstituiçãoé o MinistérioPúblico, seja a vítima “um mocinho”ou “um bandido”.
Aindafaltamuitopara o BrasilvirarumaverdadeiraDemocracia. Enquantoeste tempo nãovem, veremosdiariamenteoutrasvítimas do estuprodaConstituição. Jádisseram: se pegafogo a casa do vizinho, agora é a sua casa quetambémcorrerisco. Éprecisoajudar a apagaressesincêndiosqueconsomemosdireitos dos outros antes queosnossoscomecem a servarridosporchamasigualmenteincontroláveis, insufladasporaquelesquequeremsangue e circo. Rapidamente, riso e desprezopodemvirarpranto e desespero. Osdireitosfundamentaisqueprotegembandidos e supostosbandidossãoosmesmosqueprotegem a mim e você. Ébomque nos lembremos.
Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você está ciente dessa funcionalidade.
Termos de Uso
e
PolÃtica de privacidade