
A Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI) lançou uma atualização das diretrizes nacionais para o diagnóstico e tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA). O novo documento complementa o material de 2021 e traz orientações mais detalhadas sobre o reconhecimento precoce dos sinais de autismo, a definição dos níveis de suporte e o cuidado com práticas terapêuticas sem comprovação científica.
A neurologista pediátrica Emmanuelle Vasconcelos, que contribuiu para esta reportagem, afirma que o objetivo da nova diretriz é oferecer aos profissionais de saúde instrumentos mais confiáveis e baseados em evidências.
“As principais atualizações falam sobre a importância da gente avaliar os sintomas de uma forma mais precoce, ali mais ou menos em torno de um ano, um ano e meio, mas fazer a confirmação desse diagnóstico em torno dos três anos”, explica.

A médica ressalta que, embora o diagnóstico precoce seja o desejável, ele precisa ser feito com responsabilidade. Fatores sociais e ambientais podem interferir na avaliação.
“Existem situações sociais, por exemplo, um ambiente pouco estimulador, onde a criança fica muito nas telas, tem um ambiente pouco estimulador em termos de interação social, de brincadeiras, de trocas efetivas boas de comunicação, essa criança tende a desenvolver algumas características que são similares aos quadros de autismo”, pontua.
O novo documento também reforça a recomendação da SBNI que o diagnóstico deve considerar diferentes fontes de informação, desde relatórios multiprofissionais, relatórios de escola, entrevistas com pais, cuidadores e professores, vídeos caseiros e protocolos de triagem.
Diagnóstico deve ser criterioso e considerar o desenvolvimento da criança
O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento, e seu diagnóstico continua sendo clínico, baseado na observação do comportamento e em entrevistas com os responsáveis. A neurologista explica que a SBNI orienta o uso dos critérios definidos nos manuais internacionais DSM-5-TR e CID-11, que consideram tanto prejuízos na comunicação e interação social quanto padrões repetitivos e rígidos de comportamento.
“Os sintomas têm que estar presentes em fases precoces da vida, mas podem ser pouco percebidos à medida que as demandas sociais vão aumentando. Eles precisam trazer prejuízo claro na vida do indivíduo, e não podem ser melhor explicados por outras situações, como o transtorno de comunicação pragmática ou uma deficiência intelectual”, afirma.

Emmanuelle destaca que alterações sensoriais, como hipersensibilidade a sons, cheiros e texturas, também podem estar presentes. “Alguns autistas têm um desconforto muito grande, da mesma forma como cheiros e sabores. Eles podem ser hipersensíveis e detectarem de uma forma muito mais intensa, e isso para eles ser até algo doloroso”, exemplifica.
Outro ponto abordado pela nova diretriz são os níveis de suporte, usados para medir o grau de necessidade de assistência da pessoa autista.
“Os níveis de suporte servem para a gente mais ou menos pensar no prognóstico dessa criança, no que ela precisa para se tornar o mais próximo possível de um indivíduo típico. Mas eles são temporários, refletem aquele momento do indivíduo”, explica a médica.
Tratamentos eficazes e risco de abordagens sem base científica
A neurologista destaca que o documento da SBNI enfatiza o uso de terapias com evidência científica comprovada, e alerta contra métodos sem respaldo técnico, que podem atrasar o desenvolvimento da criança e consequentemente gerar prejuízos emocionais e financeiros às famílias.
“Existe uma perda de tempo e de dinheiro por parte das famílias quando se pensa em tratamentos que não têm grau de evidência científica. E a criança deixa de ser estimulada no período que a gente chama de janela de oportunidade neurológica, justamente o período em que o cérebro está mais acessível a ocorrer modificações”, observa.
Entre as terapias recomendadas, está a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), reconhecida como padrão ouro no acompanhamento de pessoas com TEA. Já práticas como óleos essenciais, oxigenoterapia, terapia hiperbárica, MMS, transplante fecal e dietas restritivas sem indicação médica são desaconselhadas pela SBNI, pois algumas dessas abordagens já têm evidência negativa, ou seja, não funcionam.
Aumento de diagnósticos equivocados preocupa especialistas
Além das orientações clínicas, o documento também surge em meio a uma preocupação entre especialistas da área: o aumento de diagnósticos precipitados de autismo. A neurologista aponta que muitos profissionais sem especialização adequada têm atuado na área, o que gera distorções e sobrecarga nos serviços públicos.
“Infelizmente, no mercado médico, há muitos profissionais recém-formados indo para a área do autismo por conta da demanda e do retorno financeiro, mas sem formação de qualidade. Isso faz com que a gente erroneamente dê um diagnóstico de autismo numa criança que tem outra condição”, alerta.
Esses diagnósticos incorretos, segundo ela, têm impactos diretos também na seguridade social. “Muitas famílias vão atrás de benefícios, e o INSS já tem pedido reavaliações por conta dessa grande quantidade de pessoas buscando o BPC (Benefício de Prestação Continuada) para filhos que às vezes não têm realmente um diagnóstico de autismo”, acrescenta.

Apesar dos desafios, a especialista acredita que a nova diretriz é um passo importante para a melhoria da qualidade do atendimento e para o fortalecimento da informação entre famílias e profissionais.
“Acredito que isso vai ajudar tanto no diagnóstico precoce quanto na busca de tratamentos mais eficazes. O objetivo é orientar famílias e profissionais na busca de avaliações mais seguras e consistentes, e de tratamentos com evidência científica robusta”, conclui.
O manual completo da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil está disponível gratuitamente no site oficial da instituição.
Reportagem escrita pelo estagiário de jornalismo Davi Cerqueira sob supervisão do jornalista Gabriel Gonçalves
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