Massacre

Realengo, aquele abraço

O povo não confia na Justiça criminal. E, salvo por boa vontade, não tem mesmo por que crer “no sistema”. Às vezes a paciência é pouca e a fé é escassa.

24/04/2011 às 11h32, Por Juvenal Martins

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por Vladimir Aras

A esta altura, o autor do Massacre de Realengo está sendo julgado nos tribunais “inferiores”, pois nas cortes superiores W.M.O. não tem a menor chance.

Se W.M.O. não tivesse culminado seus 12 instantes de desatino com outro ato de desprezo pela vida – a sua própria -, onde estaria agora?

Poderia ter sido linchado. O povo não confia na Justiça criminal. E, salvo por boa vontade, não tem mesmo por que crer “no sistema”. Às vezes a paciência é pouca e a fé é escassa. A Lei de Lynch ainda tem muitos adeptos no país da Lei de Gerson.

Se chegasse vivo às barras dos tribunais, W. teria os seus direitos constitucionais assegurados, como em qualquer país civilizado. Não pegaria pena de morte nem prisão perpétua. Não seria torturado para confessar. Teria direito de defesa e de explicar as razões (“razões”?) que o motivaram. Poderia até admitir que ele, sim, era covarde e cruel, e não os outros, como sentenciou em seu tresloucado vídeo-testamento.

Não importa o número de vítimas nem o tamanho da chacina. Se condenado, cumpriria somente 30 anos de cadeia (art. 75 do CP), de onde sairia aos 53 anos, ainda apto para o trabalho ou para novos crimes.

Antes, porém, W.M.O. poderia obter outros “direitos”, só conhecidos nestas plagas, próprios do cafuné processual ao qual o pseudogarantismo conduziu a jurisprudência brasileira. É o tal do coitadismo penal, baseado no inciso LXXIX do art. 5º da Constituição.

Achou? Não, sua Constituição não está desatualizada! É nesse inciso fictício que uma incerta juris(im)prudência inclui as garantias processuais mais esdrúxulas.

Numa hora é o direito de responder em liberdade porque a gravidade do crime, o clamor público e  a revolta da comunidade não bastam para justificar a prisão, nem basta a necessidade de assegurar a credibilidade da justiça e a autoridade das leis e dos tribunais. É preciso que o réu de crimes graves e repugnantes se esforce para ser preso. Matar uma testemunha vale.

Outra hora são os direito de fugir; de mentir em juízo; de dirigir embriagado e não soprar o bafômetro; e o direito de usar falsa identidade para não ser preso…. Não duvidem. Perguntem ao STJ como isto pode ser.

Esses “direitos” foram inventados por doutrinadores em proveito próprio (seus livros vendem mais e sua clientela aumenta) e graciosamente acolhidos por alguns tribunais daqui. Só os daqui, porque nem na Itália, onde nasceu Ferrajoli, tais pseudogarantias são aplicadas.

Quando não é assim pelos desvios do devido processo, mesmo crimes clamorosos – quanto aos quais não há duvidas razoáveis – não costumam receber tratamento rigoroso dos andares de cima do Judiciário, ainda quando o réu dê motivos. Os casos são inúmeros e cansei de contá-los.

Na mesma semana do Massacre de Abril um desembargador do TJ/RS mandou soltar o atropelador de Porto Alegre, aquele que fez um strike em dezenas de ciclistas que transitavam pacificamente pelas ruas da capital gaúcha. Um horrendo boliche humano. Toda a ação foi gravada em vídeo, e a repulsa social foi imensa. Mas o perpetrador está solto. É presumivelmente inocente. As vítimas que se danem e esperem. Ponto.

Acaso coisas assim não são um estímulo ao crime. Sempre há alguém pronto a pôr em execução uma má ideia, considerado o baixo preço a pagar. Pelo menos um dos vendedores das duas armas que W. utilizou foi pego. O que será dele? Apesar do Estatuto do Desarmamento, talvez fique impune. Se um dia for condenado (são tantos os recursos), sua pena pode ir de 4 a 8 anos de reclusão (art. 17 da Lei 10.826/03). Divulgou-se que um desses comerciantes da morte conhecia o atirador de Realengo pelo apelido de ”sheik”. Por que será? Teria percebido que negociava armas com uma pessoa mentalmente desequilibrada, ou com aspirações terroristas?

O pseudogarantismo é muito esperto. Se o esconderijo do sr. W tivesse sido descoberto e tivesse sido apontado em uma delação anônima ao disque-denuncia da Polícia, W. provavelmente teria de ser solto, porque, segundo o STJ, este procedimento “próprio das ditaduras” (é o que dizem) viola a regra constitucional que veda o anonimato. A busca e apreensão em sua casa poderia ser invalidada, por ter-se originado em fonte ilícita. Caberia ao operador da central de polícia dizer ao denunciante:

– “Desculpe, sr. cidadão“, com ar contrito. – “Acredito que o suspeito comprou armas e munições, mas se o sr. não me informar seu nome, endereço e RG, não poderemos realizar uma busca e apreensão no local“, continuaria. – “O senhor não viu a decisão do STJ no caso Castelo de Areia?“, completaria intrigado.

Esse poderia ser o cenário processual, de uma conduta para a qual os adjetivos faltam e que é classificável como homicídios múltiplos com três qualificadoras: meio cruel, recurso que impossibilitou a defesa das vítimas; e motivo fútil  (art. 121, §2º, incisos II, III e IV, do CP), com  a causa especial de aumento de pena do §4º do art. 121 do CP (crime contra menor de 14 anos). Isto sem falar nas tentativas de homicídio contra os estudantes sobreviventes.

Mas terrorismo não houve. Se a motivação foi o bullying do passado ou o desprezo por mulheres (as meninas foram alvos preferenciais) no presente, os crimes de W. não são classificáveis como atos de terror, embora tenham sido para lá de aterrorizantes.

Vivo estivesse, agora W. seria submetido a incidente de sanidade mental, para verificar se, na data do fato, tinha capacidade de intelecção e de autodeterminação. O famigerado motoboy que atacou mulheres no Parque do Estado (o Maníaco do Parque) em 1998 tentou valer-se da tese da inimputabilidade (por insanidade) para se livrar dos homicídios e estupros que cometeu. W. certamente faria o mesmo em busca da decisão de absolvição imprópria, que redundaria na sua internação em Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), o antigo manicômio judiciário. Poderia sair dali rapidinho.

Se o atirador de Realengo tinha algum problema psíquico isto não se sabe, mas seguramente não era um dementado. Naquele fatídico 7/abr e nos dias que antecederam a tragédia, W. demonstrou capacidade de planejamento e execução ordenados. Suas performances em vídeo denotam certo controle que talvez encobrisse o descontrole de sua mente conturbada.

Mesmo assim, entre a lucidez e o desvario, não lhe deve ter passado despercebido o grau de impunidade que beneficia autores de crimes graves no Brasil. O exemplo arrasta, eis um fato. Aqui sempre se dá um jeito de passar a mão na cabeça do réu e desculpar-lhe as faltas. O próprio W. nem bem desencarnou e já encontrou essas almas piedosas que querem sua expiação, embora tenha sido ele o terrível algoz de 12 brasileirinhos mortos e outros 22 feridos, para os quais o choro não cabe no diminutivo.
Também não deve ter escapado a W. a noção de que um ato como o que planejou ganharia manchetes sensacionalistas, horas de exposição em programas de TV e lhe daria fama mundial. O perigo agora são os imitadores. O próprio W. pode ter sido um “copycat” de outros assassinos em massa. O ataque de Columbine em 1999 pode tê-lo “inspirado”, se é que uma pessoa “normal” pode buscar inspiração numa insanidade como aquela.

Se o atirador tinha problemas mentais, isto passou despercebido pelo sistema educacional, fatidicamente a mesma escola que W. resolveu atacar. Mas a instituição não tem culpa pelo massacre.

Se o atirador foi bolinado ou humilhado quando estudante, isto também passou despercebido pelos educadores. Mas estes não têm culpa pelo massacre.

Se o atirador entrou na escola sem ser interceptado, falhou a segurança. Não havia ali um guarda municipal ou um segurança privado? Mesmo que houvesse, estes não teriam culpa pelo massacre.

Se W. tivesse sido identificado como uma pessoa doente, sua família poderia tê-lo conduzido a atendimento psiquiátrico, para tratá-lo. Não o fizeram, mas também eles não têm culpa pelo massacre.

Se houvesse mais centros de atendimento psicossocial a pessoas com problemas mentais, os planos malignos de W. poderiam ter sido desvelados.

Se houvesse mais segurança pública, as armas de fogo que chegaram as suas mãos não teriam sido fabricadas ou importadas, não teriam sido vendidas, compradas nem roubadas. Se o Estatuto do Desarmamento fosse cumprido, menos instrumentos letais como esses estariam em circulação, nas mãos de bandidos comuns ou de homicidas sanguinários.

Se o ceifador tivesse amigos, talvez pudesse ter encontrado em algum lugar o apoio e equilíbrio emocionais que pareceram lhe faltar, e cuja falta ajudou a transformá-lo num dos mais detestáveis criminosos da história brasileira.

Se a escola, a família, o Estado, se tudo falhou durante anos até o dia 7/abr, o sistema penal funcionaria para W.? Há situações que não têm conserto. Esta é uma delas. Atroz demais para ter conserto. Linchamento, pena de morte, prisão perpétua, mesmo a prisão a termo ou a internação em HCT para os insanos… De que isto serviria ao pais dos meninos e às mães das meninas de Realengo? De que servirão no coração e na memória as indenizações que seguramente o Estado do Rio será obrigado a pagar por essa tragédia universal?

Não foi a religião que “criou” W. Foi ele mesmo quem se fez assim. E talvez só na religião seja possível encontrar conforto ou consolo para um caso tão abissal e lágrimas tão profusas e amargas. – “Meu filho não está na rua; está na escola”, pensavam os pais. Ali era um lugar seguro…

No fundo, o conflito interno era o confronto entre a fama e o anonimato. W. era praticamente invisível. Ninguém gostava dele, ninguém cuidava dele, ninguém se preocupava com ele.

W. era invisível e queria ser visto e admirado, conhecido e respeitado, reconhecido e temido. Embora se tenha tornado deploravelmente famoso, W. não conseguirá realizar suas últimas vontades. Ninguém reclamou seu corpo. Nem terá o enterro que sonhou. O local de seu sepultamento será sempre um solo maldito.

W. não tinha família, não tinha amigos, não teve atendimento de saúde mental. Mas tinha armas, munições e acesso à internet. E tinha raiva, tinha ódio, tinha revolta e desprezo.

Só não tinha piedade. Matou 12 crianças. Teria matado mais se pudesse. Possibilidade aterrorizante para quem é pai. Horror indescritível para quem perdeu os seus filhos. Não há o que lhes dizer. Famílias enlutadas de Realengo, aquele abraço.

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