Mãe em dose dupla

Irmãs compartilham juntas a maternidade: uma gerou e a outra adotou

Netinha foi gerada por Julieta e doada para Ercília que é conhecida também como Cici, com um ano de vida.

12/05/2024 às 10h55, Por Rachel Pinto

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Foto: Arquivo Pessoal | Netinha com sua mãe Julieta à esquerda e sua mãe Ercília à direita

Aquele ditado popular de que mãe é uma só, não se aplica a vida da professora Anísia Gonçalves Dias Neta, de 42 anos. Com duas mães, uma biológica e outra adotiva, que também é sua tia, ela tem uma história marcada por relações familiares, de irmandade, amor e afeto e também situações inusitadas que afirmam a sua identidade e sua vivência com suas duas mães. As duas mães de Anísia, que carinhosamente é chamada por elas de Netinha, tratam-se das irmãs, Julieta Dias Martins Alves, de 73 anos e de Ercília Dias Alves, de 79 anos.

Netinha foi gerada por Julieta e doada para Ercília que é conhecida também como Cici, com um ano de vida. Ela foi adotada pela tia e o esposo dela, e a partir daí, passou a ter mãe em dose dupla. Tudo começou com os fortes laços das irmãs e de um pedido de Ercília a Julieta de que tivesse uma filha e lhe desse.

Foto: Arquivo Pessoal

Prontamente a irmã acatou este pedido e pouco tempo depois a gestação veio. Essa história se passa pelos estados de Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro. E nem mesmo todas as distâncias geográficas foram capazes de enfraquecer os sentimentos entre mães e filha.

As irmãs

Ercília e Julieta foram criadas em uma família com mais nove irmãos na cidade de Machacalis em Minas Gerais. Segundo elas, a infância e a adolescência foram muito boas com a presença e o amor dos pais, a casa sempre cheia com muitas brincadeiras e deixou memórias especiais que são guardadas até hoje.
Ercília que é mais velha seis anos do que Julieta, conta que para a ela, a irmã sempre foi como uma filha. Desde muito nova ela se preocupava em cuidar de Julieta. Também gostava de dar presentes e vestir a irmã como uma boneca.

Julieta casou-se aos 16 anos e Ercília com toda a relação de cuidado e proteção que tinha com a irmã, se aproximou cada vez mais dela e da sua família.

O tempo foi passando e as irmãs, as duas já casadas, não se desgrudavam, sempre estavam juntas e Ercília e o esposo estavam a todo momento presentes junto a família de Julieta. Após cerca de 12 anos de casada, Julieta já tinha dois filhos e em um dia quando os casais estavam reunidos, o assunto foi falar sobre filhos.

Ercília e o esposo Oscar não podiam ter filhos e nessa conversa ela naturalmente fez um pedido a irmã que gerasse um filho e lhe doasse. De forma também muito natural, Julieta respondeu que sim, faria isso e atenderia o pedido da irmã.

Foto: Arquivo Pessoal | Netinha com seu pai Oscar e sua mãe Ercília

“Eu e Ercília ficamos cada vez mais unidas. Quando casei ela cuidou de mim e dos meus filhos. Viajava com a gente e nossa relação sempre foi muito boa. Sobre eu dar Netinha para ela, foi quando atendi ao pedido dela. Ela falou assim: ‘você podia me dar um filho, eu quero uma menina’. Eu falei está bem eu dou e assim aconteceu. Eu fiquei grávida e depois que Netinha fez um ano, eu já não amamentava mais, ela levou Netinha para a sua casa”, contou.

Ercília confirmou que o pedido foi feito e atendido de forma muito tranquila. A amizade entre os casais não teve nenhum tipo de ruído e alguns meses depois, ela e o marido Oscar, receberam na escola em que trabalhavam um telefonema de Julieta, contando da gravidez de Netinha.

“Houve esse pedido meu em uma conversa que nós tivemos na cidade de Teófilo Otoni. Depois dessa conversa eu e meu esposo voltamos para Itapetinga, onde morávamos. Um certo dia, estávamos trabalhando na escola e Julieta telefonou contando que estava grávida. Meu marido quando soube ficou dizendo ‘vou ser papai, vou ser papai’ e as pessoas começaram a perguntar: ‘Ercília, você está grávida?’, eu dei risada e disse que era a nossa filha que ia chegar e que minha irmã ficou grávida para nos dar uma filha. Aí as pessoas acharam estranho e perguntaram se ela ia realmente dar a filha. E eu respondia, ‘ela vai doar, porque ela é mais do que irmã, é também uma filha'”, disse.

Ercília relembrou que ela e o esposo esperaram Netinha completar um ano, fazer o desmame e a trouxeram para a Bahia.

“Era um desejo nosso de ter filhos, mas infelizmente meu marido não pôde ter filhos. Ele tinha muito amor por ela, a amizade deles era muito grande. Nunca houve nenhum ciúmes entre eu e minha irmã e temos uma amizade e irmandade muito grande até hoje. Todos os nossos encontros sempre foram harmoniosos, na minha casa ou na dela e essa é uma história de duas irmãs com muita amizade, uma história bonita de encontros”, observou.

Foto: Arquivo Pessoal | Aniversário de 3 anos de Netinha em Itapetinga. Na foto a mãe Ercília, familiares e amigos

Para Ercília, tudo que ocorreu no passado mudou o seu presente e foi muito gratificante.

“Vejo que foi gratificante o que aconteceu no passado. Tenho uma filha maravilhosa, que tornou minha vida diferente, hoje tenho uma filha, neto, genro. Uma filha com uma família e isso não tem dinheiro que pague. Não tenho outra palavra para descrever tudo que aconteceu. Hoje eu sou feliz por isso. Imagino se não tivesse acontecido isso, como seria. Sinto que eu tenho um prêmio”, celebrou.

Foto: Arquivo Pessoal | Netinha com o filho Ravel e a mãe Ercília

Hercília disse que vivenciar a maternidade com Netinha tem sido uma experiência única em sua vida.

“A maternidade para mim é uma escola consciente onde se vive uma experiência única e nos traz uma vontade de transformação, de transformar o mundo melhor para acolher os filhos, nos proporciona a mudança de vida, bem estar e segurança. A maternidade é um amor incondicional”, acrescentou.

Julieta reforçou também que o fato da irmã ter adotado Netinha nunca foi um motivo de ciúmes entre elas ou qualquer situação desconfortável. Julieta se separou, casou-se novamente, foi morar no Rio de Janeiro e mesmo com a distânci,a mantinha o contato com a irmã e com Netinha.

Foto: Arquivo Pessoal | Netinha com a mãe Julieta e primas

De acordo com ela, durante uma bom tempo, Ercília e Netinha iam visitá-la no Rio de Janeiro e aproveitavam para matar as saudades, vivenciar momentos felizes e estreitar os laços de afeto.

“Elas iam para o Rio de Janeiro sempre. Netinha também ia passar as férias comigo. Nunca houve ciúmes. Nossa relação é muito boa, graças a Deus”, afirmou Julieta.

Netinha também falou o que a sua história de ter duas mães representa em sua vida. Ela destacou que desde muito pequena esse entendimento sobre as duas famílias foi muito natural e ela sempre soube que Ercília e Oscar eram os seus pais adotivos e ao mesmo tempo os seus tios.

“Minha história é como muitas histórias que se repetiram e se repetem e em muitas famílias. Existe isso das tias criarem o sobrinho, avó criar o neto, às vezes se dá com a família morando perto ou junto. A única diferença é que eu fui morar longe e eu fui criada com a mãe biológica separada. Chamo minha mãe de mãe e minha tia de mainha. Fui adotada oficialmente, minha tia é minha mãe mesmo e eu tenho duas mães. A gente não fala assim mãe que gerou. Só falo dessa forma quando vou explicar para as pessoas a quem eu estou me referindo”, contou.

A professora considera sua história como uma experiência muito bonita tanto para ela, como para a família. Representa a particularidade das irmãs e a concretização de um enlace de amizade e irmandade a partir de uma filha que foi passada de uma para outra.

“Uma não podia ter filhos na relação de casamento e a outra que já tinha filhos, doou a filha para a outra para que fizesse que essa maternidade fosse vivenciada por aquela que não teve oportunidade de gerar. É uma coisa bela na família. Quando eu falo as pessoas acham interessante, inusitado, diferente, estranho. Mas, no final como me veem falando muito tranquilamente e acham legal. Mas, há problematizações que geralmente vem de pessoas que falam e provocam temas da psicanálise. Isso tem a ver com a questão da rejeição, se eu me senti rejeitada sobre ver a história a partir dos adultos e não a partir da criança e tem essas problematizações todas. Mas, há o fato de que eu conto e lido muito tranquilamente”, acrescentou.

Netinha disse ainda que nunca foi criada tendo toda a liberdade de chamar seus tios de mãe e pai sempre que quisesse ou se quisesse.

“Algo natural entre a gente e foi crescendo o desejo de chamar cada vez mais de mãe e pai os meus tios e eu não lembro do dia onde aconteceu essa virada, não houve um dia que eu descobri a verdade sobre a minha vida. Isso me ajudou muito a ter uma relação muito tranquila com essa história. A distância geográfica da minha mãe Julieta não foi uma distância de deixar aquilo menos importante de forma alguma”, pontuou.

A professora disse que nunca sentiu falta da mãe Julieta, porque embora não se vissem tanto, o contato por ligações era bem frequente e no Dia das Mães, na escola, por exemplo, quem participava era a mãe Ercília.

“Sempre tinha uma mãe presente que acompanhava tudo, fazia as cartinhas e entregava para ela e tiveram momentos que eu quis fazer para a outra e entregava quando a gente se encontrava. Também ligava. Eu nunca senti um vácuo. Já senti a falta da mãe Julieta. Sentimentalmente não foi algo de me marcar negativamente porque eu tinha uma presente. A presença foi muito importante, por mais que a outra não estivesse a ela recebia todo o meu carinho e todas as homenagens quando estava perto”, afirmou.

Foto: Arquivo Pessoal | Netinha com a mãe Julieta

Para a filha, ter duas mães representa que ela e uma pessoa sortuda.

“Aquele ditado de que mãe só tem uma eu nunca pude falar. É uma fartura de tudo. De mães, de amor, de cuidado e carinho. De tudo que mãe representa. Uma coisa muito boa, é minha história e uma história que eu gosto”, acrescentou.

Netinha também é mãe do pequeno Ravel, de 7 anos. Ela contou que hoje que é mãe e que vivencia a maternidade entende a complexidade no entorno da dela, as dores e delícias, alegrias e dificuldades.

Foto: Arquivo Pessoal | Netinha com sua avó Anísia e seu filho Ravel

“Quanto mais eu penso e vivencio a minha maternidade, mais eu acolho e amo as minhas duas mães. Tenho um amor gigantesco e incondicional por Ravel e o desejo enorme de cuidar dele e do que eu possa proporcionar especialmente a partir e uma educação para ele seja um adulto bom para ele, para as pessoas e para o mundo. Nisso eu entendo a dificuldade que é educar, e para mim educar meu filho, é mais do do educar uma criança, educar o meu filho é umas das tarefas mais árduas e difíceis”, pontuou.

Ela ressaltou ainda que não há um manual pronto para ser mãe. Que não é algo se ‘compra’ nem em loja e nem pela internet e se recebe na porta com as instruções.

“A gente não é educado para ser pai e mãe. Não existe um estudo sobre parentalidade e você tem que tentar de todas as formas suprir essa dificuldade que é criar um filho. É algo muito difícil, é muito complexo. Por isso eu entendo da dificuldade, e da complexidade e de todo o amor, toda alegria, felicidade e de todo prazer há dentro da gente exercendo esse lugar de maternidade. Sendo mãe hoje eu entendo, acolho e amo muito mais as minhas duas mães”, finalizou.

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