Artigo

Direito, história, memória e consciência (negra)

Este artigo busca refletir como o direito, a história e a memória contribuem para a consolidação da “consciência” (negra) como data e afirmação identitária.

20/11/2023 às 14h39, Por Acorda Cidade

Compartilhe essa notícia

consciência negra
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Por: Gabriel Andrade de Salles Maia*

O dia 20 de novembro ficou consagrado no calendário de datas “comemorativas” brasileiras como o “Dia da Consciência Negra” ou “Dia Nacional de Zumbi” em referência ao histórico líder do Quilombo dos Palmares que foi morto pela coroa portuguesa em 20 de novembro do ano de 1695 tornando-se herói e símbolo de resistência dos negros contra as opressões e violações sistemáticas aos seus direitos (como o direito de ser livre, no Brasil colônia, ou o direito de permanecer vivo, no Brasil do século XXI – apenas para efeitos de economia nos exemplos).

O objetivo deste artigo não é escrever diretamente sobre a data em si ou discorrer sobre evoluções legislativas que gradualmente consolidaram conquistas para a comunidade negra, mas refletir intelectualmente sobre como o direito, a história e a memória, uma vez postos em relação, contribuem para a consolidação da “consciência” (negra) como data e afirmação identitária.

A pergunta sobre aquilo que o direito “é”, ou seja, a respeito do conceito de “direito”, comportou ao longo da história séries de respostas às vezes divergentes, por vezes complementares, atestando, primeiro, que a palavra em sua etimologia não possui sentido preciso e fechado sendo análoga a si mesma (abrigando semelhanças e diferenças que permitem entendimento recíproco ainda que diferentes os conceitos) e, segundo, que o direito possui dimensão temporal, historicidade – mas isto é “lugar comum”, frivolidade inútil quando irrefletida.

Sou professor universitário de Direito e, nesta função, tenho consciência do quanto o ensino jurídico ainda é fortemente dogmático e inclinado a partir de cânones historicamente hegemônicos – como a ideia de que o direito é produzido de modo monopolizado pelo Estado segundo certas formas e procedimentos legislativos. Os cânones contem verdades, ainda que relativas e temporárias no amplo fluxo da história. É preciso estar atento as narrativas da “história única” e estar atento que o direito estatal-legal não representa o “fim da história”. E por quê? Bem, uma resposta inicial indicaria que os cânones reproduzem certas escolhas do poder jurídico-político, escolhas que privilegiam determinados aspectos do passado, certas memórias, sobre outros.

Pessoalmente compartilho um conceito de Direito originado da filosofia moral e filosofia analítica, o Direito como uma “prática social”. A noção de “prática social” permite intuitivamente a percepção de que o Direito e os direitos não possuem uma realidade externa autônoma e independente dos sujeitos que os criam e usam (já que é uma “prática”) e, em seguida, que o Direito e os direitos não existem isoladamente dependendo de uma complexa e ordenada cooperação por parte daqueles que os praticam (já que é “social”).

Esta vinculação do objeto (o Direito) aos sujeitos (os praticantes) atesta que o Direito possui uma dimensão compreensiva que abre espaço para interpretações que, uma vez aplicadas, atualizam o direito dando concretude e conferindo um sentido dinâmico ao mesmo. Aqui temos já uma noção mais complexa da vinculação entre Direito e História, pois, tanto juristas como historiadores interpretam os vestígios do passado. Contudo, se os juristas precisam olhar para o passado tentando compreender aquilo que faziam os praticantes (quando só então poderão interpretar conceitos, institutos e instituições), os historiadores precisam olhar para o passado tentando compreender não apenas aquilo que existia como um fato empírico hegemônico, como também aquilo que foi “apagado” pelo poder daqueles que escreveram a história dominante.

Permitam-me lançar mão do exemplo para tornar claro o que quero expressar.

Se olho, enquanto jurista, para as leis abolicionistas do período colonial brasileiro (Lei Diogo Feijó – 1831; Lei Euzébio de Queiroz – 1850; Lei do Ventre Livre – 1871; Lei do Sexagenário – 1885 e; Lei Áurea – 1888) é possível perceber como a dominação dos corpos negros estava à época legitimada por um conceito de “propriedade” que não era uma construção solitária individual ou meramente jurídica, mas o produto de uma construção social que também possuía fundamentos econômicos – daí o porquê das legislações abolicionistas terem sido meras declarações para “inglês” ver. O Direito formalmente era modificado, mas as práticas e hábitos (que construíram a memória escravista dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX) eram materialmente mantidos na mentalidade dos praticantes do Direito e da sociedade genericamente considerada.

Esta memória escravista foi transmitida na passagem da Monarquia para a primeira República, desta última para a Era Vargas, e ainda permanece entre nós porque ainda que o conceito de “propriedade” tenha sido modificado e consideremos como anacrônico, imoral e ilegal que os corpos negros sejam suscetíveis de domínio (a defesa pública de tese contrária incorreria moralmente no politicamente incorreto e juridicamente em crime de racismo) as nossas práticas e instituições ainda são fortemente dominadas por uma ideologia racista que subalterniza a população negra (quando negros estão menos inseridos no mercado de trabalho a despeito de serem maioria numérica da população brasileira; quando negros são menor remunerados que brancos para o exercício de funções profissionais semelhantes; quando os negros são alvos preferenciais das abordagens policiais, quando os negros formam a maioria da população carcerária etc.).

Não é possível “consciência” (e construção de uma identidade nacional democrática) sem a compreensão de que compartilhamos historicamente uma memória socialmente racista e sem a compreensão de que juridicamente as nossas práticas, institutos e instituições são moldados por este tipo de memória. Eu creio que talvez seja esta noção que está na base de um conceito de racismo não como um problema individual, mas como uma questão estrutural ou multidimensional. Sem esta consciência, continuaremos a atualizar a Casa Grande e a Senzala em pleno século XXI, continuaremos a reproduzir o mito da “democracia racial” brasileira, o mito de que os corpos negros são naturalmente sensuais ou naturalmente inclinados ao crime, o mito de que as religiões de matriz africana são primitivas e diabólicas, o mito de que os negros não são biologicamente inclinados a atividades intelectuais e uma série de outros “non senses”.

Não é possível “consciência negra” (e, portanto, construção da memória e identidade negra), sem a compreensão de como as tradições negras materializadas na música, na dança, na culinária, na moda, na literatura, na produção acadêmica, enfim, em tudo aquilo que compõe a “cultura” negra, foram sistematicamente apagados da história ou reduzidos ao âmbito do folclórico, do pitoresco, do exótico. Como juristas, precisamos olhar para o passado também ao modo de um historiador percebendo o apagamento de histórias alternativas e críveis pelo poder hegemônico dominante.

Se o direito à memória (e à construção da identidade) é um direito fundamental reconhecido em nosso ordenamento constitucional, então que modifiquemos o nosso direito não apenas em sua forma como em nossa prática.

Gabriel Andrade de Salles Maia* é Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Pós-graduando em Direitos Humanos e Contemporaneidade (UFBA); Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (ABRAFI), advogado e professor universitário.

Siga o Acorda Cidade no Google Notícias e receba os principais destaques do dia. Participe também dos nossos grupos no WhatsApp e Telegram

Compartilhe essa notícia

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Quando dois mais dois são cinco… e meio!

    Quando dois mais dois são cinco e meio, a História vira uma historinha, um texto aberto, verdadeira fonte criativa para a construção de muitas outras historinhas, onde a História pode ser reinscrita e remodelada em infinitas “narrativas”, que não guardam qualquer nuance, matiz ou contradição. Tudo concorre harmonicamente para confirmar a “moral da história” e, por evidente, por em lados separados, os mocinhos e os vilões. Ou melhor: os opressores e os oprimidos!
    Uma dessas historinhas, muito popular atualmente, reconta a História do Brasil a luz da raça, fazendo com que experiências seculares sejam pintadas, apenas e tão somente, em uma paleta de branco e preto, sem o menor respingo de qualquer cor! Lançando mão dessa paleta simplificadora, o primeiro capítulo da historinha, intitulado “A história da escravidão nas Américas”, traz palavras fáceis, argumentos superficiais e imagens dramáticas, uma composição de forte impacto emocional, feita para forçar a “adoção de um lado”: preto… ou branco, não existe meio termo, tudo leva ao extremo interpretativo, sob pena de adoção do “lado errado da História”.
    A historinha conta o lado “certo” da história. Nela, tudo começa com o comércio de escravos africanos, um empreendimento português, inaugural e inédito, pois, o milenar comércio de escravos feito em terras sub-saarianas “não conta”, era uma escravidão “não -brutal”, contextual, melhor descrita como uma experiência antropológica local, uma coisa cultural, “humanizada, controlada e familiar”, não era nada muito expressivo, moral ou numericamente. Aprisionados pelo mercado mulçumano de escravos, milhões de pessoas foram arrastadas em caravanas que cruzavam o deserto em condições mortais, em meio as quais eram comuns as práticas como castração dos homens e estupro das mulheres, ao final, quando sobreviventes, todos igualmente convertidos em escravos para trabalho doméstico, escravos para lavoura, escravos sexuais… escravos. Esses episódios historicamente inconvenientes, quando muito, são trazidos em notinhas de rodapé, e não poderia ser diferente, porque contá-los demanda muitas tintas, muitas cores “proibidas”, cores capazes de destruir definitivamente a paisagem em branco e preto que contextualiza essa e muitas outras historinhas para boi dormir.
    Então, tem que simplicar! Senão, como pintar em branco e preto a paisagem da escravidão colonial, gênese da história nacional, se as estampas que lhe revelam mostram, por exemplo, que as elites africanas, assim como as brasileiras e as europeias, enriqueceram, e muito, com o comércio de escravos? Como ficaria a monocromática “dívida histórica”? Como pintar em branco preto as cenas que mostram que o comércio de escravos saídos da África profunda foi fortemente dominado por reinos locais, como o Daomé, que fizeram fortuna oferecendo pessoas para qualquer um que as quisesse e pudesse comprar?
    Não dá, porque dois mais dois tem que dar cinco… e meio, e pra dar esse resultado tem que tirar qualquer nuance, qualquer cor, tudo tem que ser pintado em “branco e preto”. Sem muitos “detalhes” históricos que deixam tudo confuso, fortemente colorido, miscigenado, contraditório, humano demais, real demais, com cara de “História de verdade”, e aí não dá certo. Historinha não é assim, tem que ter mocinho e vilão bem definido, em lados opostos, um só bate e o outro só apanha, oprimido e opressor: bem facinho de enteder! A historinha que simplicar para empolgar os seguidores, que estão acostumados a “apertar no like, se inscrever no canal e dar o joinha”.

Mais Notícias

image

Rádio acorda cidade