O caso Simone André Diniz (2006)

Apesar de opiniões infundadas em contrário, há racismo no Brasil. Vejamos um caso concreto.

15/06/2021 às 14h57, Por Kaio Vinícius

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Por Vladimir Aras

No caso Simone André Diniz, apreciado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2006, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente por violação aos direitos humanos da vítima num contexto de racismo institucional. A decisão proferida há mais de uma década diz respeito à limitação de acesso de uma mulher negra ao mercado de trabalho por motivo racial.

Em 1997, Aparecida Gisele Mota da Silva publicou na página de classificados do jornal Folha de São Paulo um anúncio de emprego. Oferecia vaga de trabalho doméstico para pessoa “de preferência branca”. A pretendente à vaga, Simone Diniz, era uma mulher negra. O emprego lhe foi negado, o que configura discriminação racial, já àquela época vedada pela Lei n. 7.716/1989.

Infelizmente, o inquérito que apurou esse crime foi arquivado pelo Ministério Público de São Paulo. A Promotoria alegou que não houvera “qualquer ato de racismo” nem “base para oferecimento de denúncia”. Em função disto, o caso foi levado ao sistema interamericano de direitos humanos, começando por Washington.

Lá a Comissão Interamericana entendeu terem ocorrido violações à Convenção Americana de 1969 em detrimento da trabalhadora Simone André Diniz, e que o Brasil era internacionalmente responsável pelo ato. A Comissão recordou que o dever de respeitar e garantir os direitos humanos contra agressões de terceiros também resulta do fato de que os Estados têm competência para aprovar suas leis e para regular as relações entre particulares. Portanto, os Estados “devem também velar para que nessas relações privadas entre terceiros se respeitem os direitos humanos”, do contrário, “o Estado pode tornar-se responsável pela violação desses direitos”.

Assim, embora o ato de discriminação racial tenha ocorrido numa relação havida entre particulares, o Estado brasileiro tinha duas obrigações internacionais inafastáveis. A primeira era a de “velar para que nessa relação fossem respeitados os direitos humanos das partes a fim de prevenir a ocorrência de uma violação”; e a segunda era a de, “na eventualidade de haver a violação, buscar, diligentemente, investigar, processar e sancionar o autor da violação, nos termos requeridos pela Convenção Americana”.

A Comissão também se manifestou sobre o racismo institucional que marca a sociedade brasileira, atestando que se trata de um “obstáculo à aplicabilidade da lei antirracismo no Brasil”, tendo levado em conta declaração do então Secretário Executivo do Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra, Carlos Moura, segundo o qual “[d]a prova testemunhal, passando pelo inquérito na polícia até a decisão do Judiciário, há preconceito contra o negro. Os três níveis são incapazes de reconhecer o racismo contra o negro”. Tal tratamento desigual por motivos raciais funda-se na alegada dificuldade de policiais, membros do Ministério Público e juízes de provar o dolo de discriminar, sempre que o autor do crime nega tal intenção. Muitas autoridades dessas instituições costumam aceitar facilmente a tese de “mal entendido” ou de que se tratou de uma “brincadeira”, o que faz com que poucos casos de racismo e discriminação cheguem a julgamento.

Do racismo institucional, que nega ou procura minimizar as violações e naturaliza a situação de desigualdade, resulta uma discriminação indireta, muito mais perniciosa que os insultos raciais em si, pois é uma prática estatal que “impede o reconhecimento do direito de um cidadão negro de não ser discriminado e o gozo e o exercício do direito desse mesmo cidadão de aceder à justiça para ver reparada a violação”, causando um impacto negativo, de natureza dissuasória e duradoura, na população negra.

Em Simone André Diniz, dever internacional de investigar, processar e punir foi mais uma vez assentado pelos órgãos do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, no qual aparece como direito das vítimas. Segundo a Comissão, “toda vítima de violação de direitos humanos deve ter assegurada uma investigação diligente e imparcial e, em havendo indícios de autoria do delito, deve ser iniciada a ação pertinente para que juiz competente, no marco de um processo justo, determine ou não ocorrência do crime”. Quando este dever não é cumprido pela Polícia ou pelo Ministério Público, inclusive em relação à discriminação racial, o Estado Brasileiro “viola flagrantemente o princípio da igualdade insculpido na Declaração e Convenção Americanas, as quais se obrigou a respeitar”.

No caso concreto, a Comissão asseverou que “excluir uma pessoa do acesso ao mercado de trabalho por sua raça constitui um ato de discriminação racial”, com base na Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Segundo o artigo 1º da Convenção,

“discriminação racial” compreende qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condição, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.

Assim, se o Estado se omite e, com isso, permite que a discriminação racial, como violação de direitos humanos, permaneça impune, descumpre o artigo 24 da Convenção Americana, combinado com o artigo 1.1 do mesmo tratado, por ofensa ao princípio da igualdade e do correlato direito à igual proteção perante a lei.

Tal omissão das autoridades brasileiras em dar curso à persecução penal de forma “diligente e adequada” cria o risco de reproduzir o racismo institucional, no qual “o Poder Judiciário é visto pela comunidade afrodescendente como um poder racista, como também resulta grave pelo impacto que tem sobre a sociedade na medida em que a impunidade estimula a prática do racismo”. Tal quadro não deve perdurar, o que reclama, na visão da CIDH, a conscientização institucional do Poder Judiciário para “tornar efetivo o combate à discriminação racial e ao racismo”.

Pelo fato de a vítima ter sido submetida a tratamento desigual pelas autoridades brasileiras de persecução criminal, em um ambiente de racismo institucional, a Comissão concluiu que “o Estado brasileiro violou o artigo 24 da Convenção Americana, em face de Simone André Diniz” e que o Estado “falhou no cumprimento de sua obrigação de administrar a justiça” à vítima, que fora discriminada em razão de sua cor. Em suma, o Brasil “não cumpriu sua obrigação convencional de, eficaz e adequadamente investigar, processar, sancionar e buscar o restabelecimento do direito violado”.

A omissão do Ministério Público e do Poder Judiciário é retratada no exame do procedimento adotado pela Promotoria de Justiça e pelo Juízo de Direito, na comarca de São Paulo, à luz do art. 28 do CPP:

122. A Comissão tem conhecimento que a lei processual penal brasileira estabelece que o Ministério Publico poderá pedir o arquivamento de uma denúncia penal quando não encontrar elementos que possam indicar a ocorrência de crime e o juiz, apesar de não estar obrigado, poderá determinar esse arquivamento. Entretanto, tal decisão não pode ser incongruente com o comando constitucional brasileiro que garante a apreciação do Judiciário para toda lesão ou ameaça de direito. Como também não pode ferir o comando convencional que garante a toda pessoa não somente o direito a um recurso efetivo mas também o direito ao desenvolvimento da possibilidade de recurso judicial.

Embora se tratasse inicialmente de uma questão entre particulares, em suas relações privadas, a responsabilidade internacional do Brasil apresentou-se “em razão de seu compromisso internacional de prevenir e combater a discriminação racial”, incumbindo-lhe “a obrigação adicional de tomar todas as medidas necessárias para estabelecer se nos fatos denunciados por Simone André Diniz, houve ou não a prática de racismo e discriminação racial”. Para a Comissão, a instauração do inquérito policial não eximiu o Estado brasileiro de sua responsabilidade por negar acesso à justiça a Simone André Diniz, pois o inquérito “não era remédio jurídico adequado e eficaz para processar, sancionar e reparar uma denúncia de violação de direitos humanos, de acordo com os padrões convencionais”. Afirmou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que “o meio jurídico idôneo seria a ação penal pública, instaurada pelo Ministério Público, que conferiria ao juiz o poder de, havendo indícios da ocorrência do crime, julgar o autor da violação e eventualmente condená-lo, o que não ocorreu no particular”.

Por tais razões, a Comissão entendeu que o Estado brasileiro também violou os artigos 8.1 e 25, combinados com o artigo 1.1, da Convenção Americana, em face de Simone André Diniz, “por não haver iniciado a ação penal pertinente para apurar denúncia de discriminação racial sofrida por esta”.

Em função das violações estatais ao direito à igualdade perante a lei, à proteção judicial e às garantias judiciais, a Comissão expediu doze recomendações ao Estado brasileiro:

1. Reparar plenamente a vítima Simone André Diniz, considerando tanto o aspecto moral como o material, pelas violações de direitos humanos determinadas no relatório de mérito e, em especial;

2. Reconhecer publicamente a responsabilidade internacional por violação dos direitos humanos de Simone André Diniz;

3. Conceder apoio financeiro à vítima para que esta possa iniciar e concluir curso superior;

4. Estabelecer um valor pecuniário a ser pago à vítima à título de indenização por danos morais;

5. Realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a legislação antirracismo seja efetiva, com o fim de sanar os obstáculos demonstrados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório;

6. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de estabelecer e sancionar a responsabilidade a respeito dos fatos relacionados com a discriminação racial sofrida por Simone André Diniz;

7. Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e da polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação racial e racismo;

8. Promover um encontro com organismos representantes da imprensa brasileira, com a participação dos peticionários, com o fim de elaborar um compromisso para evitar a publicidade de denúncias de cunho racista, tudo de acordo com a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão;

9. Organizar Seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário, Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais com o objetivo de fortalecer a proteção contra a discriminação racial e o racismo;

10. Solicitar aos governos estaduais a criação de delegacias especializadas na investigação de crimes de racismo e discriminação racial;

11. Solicitar aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de Promotorias Públicas Estaduais Especializadas no combate ao racismo e à discriminação racial;

12. Promover campanhas publicitárias contra a discriminação racial e o racismo.

Armandinho e Camilo. Autor: cartunista catarinense Alexandre Beck.


 

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