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A convenção de Palermo contra o crime organizado

Direta ou indiretamente, outras leis brasileiras cumprem o papel de normas implementadoras dos mandados convencionais de Palermo.

27/10/2020 às 10h44, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras 

1. Introdução

Se o século XX assistiu ao fortalecimento de várias organizações de tipo mafioso – fato que ocorreu inclusive no Brasil, com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e outros grupos semelhantes –, o século XXI significativamente se iniciou com um instrumento internacional de enorme importância para o combate à delinquência organizada transnacional: a Convenção de Palermo.

Não foi por acaso que a Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu a cidade siciliana de Palermo como sede de sua conferência sobre crime organizado, realizada em dezembro de 2000. Em pleno território da Cosa Nostra, foi assinada a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (United Nations Convention against Transnational Organized Crime), ou UNTOC na sigla em inglês.

O simbolismo é evidente. Foi ali que em 1992 dois membros da magistratura do Ministério Público italiano, Giovane Falcone e Paolo Borselino, foram chacinados pela Cosa Nostra, nos massacres de Via Capaci e Via d’Amelio. Os atentados fatais foram uma represália dessa organização criminosa ao chamado Pool Antimafia, que levou à prisão dezenas de mafiosi, inclusive o boss Salvatore Riina.

2. A Convenção de Palermo

A Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional é o único instrumento universal conta a delinquência organizado de cunho transfronteiriço. Soma-se a textos importantes, como a Convenção de Viena de 1988, sobre narcotráfico, e à Convenção de Mérida, de 2003, contra a corrupção.

O texto fundamental da Convenção de Palermo de 2000 é complementado por três protocolos adicionais, de livre adesão ou ratificação pelos Estados Partes do tratado-mãe. São eles:

a) o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea;
b) o Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças; e
c) o Protocolo Adicional Relativo à Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças, Componentes e Munições.
Segundo o art. 37, a Convenção de Palermo pode ser completada por um ou mais protocolos Para se tornar Parte num protocolo, um Estado ou uma organização regional de integração econômica deve igualmente ser Parte da UNTOC. Os protocolos são facultativos para os Estados Partes da UNTOC.

Embora nos últimos quatrocentos anos tenham existido, em quase todo o globo, diferentes espécies de grupos criminosos estruturados, foi no século XX que o crime organizado assumiu uma nova dimensão, com a sua profissionalização. Estudiosos da sociologia, da economia e do direito passaram a ocupar-se do tema, em suas mais variadas formas e manifestações.

Para a evolução do crime organizado, a globalização da economia teve e vem tendo grande importância, na medida em que todo o aparato desenvolvido para a economia formal e para trocas capitalistas legítimas foi apropriado por esquemas criminosos ao redor do globo. Crimes antes praticados apenas no âmbito doméstico das nações passaram a ser cometidos também no plano transnacional, em razão das facilidades da nova economia global. O tráfico de armas, de drogas, de pessoas e órgãos e tecidos humanos, de animais silvestres e de bens culturais, junto com a prostituição, a exploração de jogos de azar, a violação de direitos de autor e a biopirataria, são negócios explorados pelas novas máfias e que produzem lucros assombrosos, maiores do que o Produto Interno Bruto (PIB) de diversos países.

É evidente que as organizações criminosas, cada vez mais poderosas, acabariam procurando ganhos de escala, para ampliação dos seus mercados consumidores de entorpecentes, de produtos contrabandeados, de armas e outros bens e serviços ilícitos. Do mesmo modo, tais grupos não deixariam de se valer dos sucessos da integração econômica mundial, decorrente das novas tecnologias e dos cada vez mais eficientes sistemas globais de telecomunicações e de transportes. Essa logística pensada para o mercado legítimo de produtos e serviços foi fundamental para a ampliação do poder de tais organizações.

A maior mobilidade de pessoas e de valores (ativos), propiciada pelo levantamento de barreiras alfandegárias, pela dispensa de vistos de entrada, pela ampliação da malha de transportes de passageiros e de cargas, pelo estabelecimento de uma rede internacional de computadores (a Internet) e pela criação de câmaras internacionais de compensação, como o sistema “Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication” (SWIFT), são vantagens que foram percebidas pelos grupos mafiosos transnacionais e logo incorporadas às suas estratégias operacionais.

É neste cenário que se insere a UNTOC.

3. Estrutura da Convenção de Palermo

Componente principal de um dos mais importantes regimes globais de proibição, a UNTOC lida com o direito penal, o direito processual, o direito administrativo e o direito internacional.

A Convenção de Palermo tem dispositivos de seis categorias:

a) normas de criminalização, jurisdição penal e responsabilização;
b) normas sobre meios especiais de obtenção de prova e medidas de proteção a vítimas, testemunhas, peritos e réus colaboradores;
c) normas sobre recuperação e repatriação de ativos e destinação de bens confiscados;
d) normas de cooperação jurídica internacional, cooperação policial e transferência de condenados;
e) normas de natureza administrativa e institucional, de prevenção e de cooperação técnica; e
f) normas convencionais genéricas comuns a qualquer tratado.
Em tratados, as normas de cunho penal são expressas em mandados de criminalização compulsória ou facultativa, que sempre dependem da interposição de leis penais domésticas, em sentido estrito. Não basta o tratado; em nome do princípio da legalidade penal estrita, deve haver uma lei interna de criminalização.

De acordo com a Convenção de Palermo, os Estados partes devem tipificar certos crimes em seu ordenamento jurídico, como a associação em organização criminosa (art. 5º), a lavagem de dinheiro (art. 6º), a corrupção (art. 8º) e a obstrução da justiça (art. 23). Devem também afirmar sua jurisdição territorial ou extraterritorial para julgar tais crimes (art. 15), para os quais devem ser previstas penas proporcionais e dissuasivas. Deve ser possível punir autores e coautores, assim como pessoas jurídicas, sendo que estas, ao menos, no âmbito civil ou administrativo (art. 10). Este é o primeiro grupo de dispositivos.

O segundo grupo de normas dispõe sobre os meios especiais de obtenção de prova e medidas de proteção a vítimas, testemunhas, peritos e réus colaboradores. Entre as primeiras, estão a colaboração premiada (art. 26), assim como as entregas vigiadas, a vigilância eletrônica e a infiltração policial (art. 20). Quanto às medidas protetivas, estas atendem vítimas (arts. 24.4 e 25), testemunhas (art. 24) e colaboradores (art. 26.4).

O terceiro conjunto de dispositivos traz regras sobre congelamento ou bloqueio de bens, direitos e valores ligados às atividades de organizações criminosas, para fins de eventual confisco. É o que se vê nos arts. 12 e 13 da UNTOC, que cuidam, respectivamente, de normas sobre indisponibilidade, perdimento e cooperação para confisco de ativos, assim como sobre sua destinação (art. 14).

No quarto agrupamento, estão as normas sobre assistência jurídica internacional em geral (art. 18), extradição (art. 16), formação de equipes conjuntas de investigação (art. 19), transferência de processos penais (art. 21), transferência de pessoas condenadas (art. 17) e repatriação de ativos (art. 13). Tais dispositivos formam um microtratado de cooperação internacional, que funciona como texto subsidiário caso os Estados Partes da UNTOC não tenham acordos de extradição ou tratados de Mutual Legal Assistance (MLA) específicos.

Normas de natureza administrativa e institucional, de prevenção e de cooperação técnica formam o quinto conjunto de regras da Convenção de Palermo. Podem ser citadas as medidas para prevenção da lavagem de dinheiro (art. 7º), da corrupção (art. 9º) e da criminalidade organizada (art. 31), e medidas de cooperação técnica (arts. 29 e 30).

Por fim, há um conjunto de normas, o sexto, que contém dispositivos sobre assinatura e ratificação do tratado e adesão a ele (art. 36), vigência (art. 38), emendas (art. 39), denúncia do tratado (art. 40), solução de controvérsias (art. 35), depositário do tratado e línguas oficiais (art. 41). São as regras gerais de DIP, presentes em qualquer tratado multilateral. O art. 32 cria e regula o funcionamento da conferência das Partes, chamada COP, na sigla em inglês. O art. 34 reforça a necessidade de cumprimento aos mandados expressos convencionais.

4. Implementação no Brasil

Desde a promulgação do Decreto 5.015/2004, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada está em vigor no Brasil. O texto de Palermo é completado por três protocolos adicionais, que foram incorporados ao direito interno brasileiro, por meio dos Decretos n. 5.016 e 5.017, de 12 de março de 2004. O terceiro protocolo foi promulgado pelo Decreto 5.941, de 26 de outubro de 2006.

A incorporação do conjunto convencional assim se deu:

Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada

– Decreto 5.015/2004

Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea;

– Decreto 5.016/2004

Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças

– Decreto 5.017/2004

Protocolo Adicional Relativo à Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças, Componentes e Munições

– Decreto 5.941/2006

O tratamento da temática a que se refere esse complexo convencional deu-se de duas maneiras:

a) com antecedência, por influxos próprios do legislador nacional, por meio da Lei 9.034/1995, ou da Lei 9.613/1998, ou da Lei 9.807/1999, ainda antes da conclusão da Convenção de Palermo;

b) com posteridade, por meio do cumprimento do dever convencional de implementação das disposições dos quatro tratados de Palermo, caso em que o legislador nacional observou mandados convencionais expressos, de cunho penal, processual penal e administrativo.

Em vigor desde 2013, a Lei do Crime Organizado – Lei 12.850/2013 (LCO) procura implementar alguns dos dispositivos de Palermo. O diploma trouxe o conceito legal de crime organizado e o tipo penal de associação em organização criminosa, além de regular meios especiais de obtenção de prova e criminalizar condutas que podem prejudicar a operacionalização ou utilização dessas técnicas.

Sua introdução permitiu ao Brasil enfrentar internamente e responder internacionalmente, de forma mais pronta e eficiente, à crescente ameaça do crime organizado doméstico e transnacional e a suas diversas manifestações, como o tráfico (de pessoas, de órgãos, de drogas, de animais silvestres, de bens culturais, de armas e munições etc), o cibercrime, a corrupção, a pirataria marítima, o terrorismo e os “novos” delitos de contrafação ou adulteração de bens de luxo.

A lei de 2013 detalhou o procedimento da maior parte das chamadas técnicas especiais de investigação (TEI), muitas das quais instituídas, mas não elucidadas, pela Lei 9.034/1995, antiga lei de organizações criminosas.

Subproduto de um debate iniciado em 2006 e que privilegiou alguns aspectos de boa legística material, o texto da LCO foi confirmado pelo Senado no curso da sua agenda positiva – resultado dos protestos populares de junho de 2013 – e foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff em agosto de 2013. De autoria da senadora Serys Slhessarenko, o projeto originalmente aprovado pela Câmara Alta era superior ao substitutivo chancelado pela Câmara dos Deputados, cuja redação prevaleceu.

Concretizando algumas importantes sugestões da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), o projeto sancionado em agosto de 2013 seguiu, em linhas gerais, os parâmetros da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, na sigla em inglês. Mas não com integral fidelidade.

A Lei 12.850/2013 define organização criminosa, tipifica a associação em organização criminosa, dispõe sobre a investigação criminal de tais crimes, os meios de obtenção da prova, estabelece novas infrações penais correlatas e regula o procedimento criminal para o julgamento de tais crimes. Além disso, a Lei 12.850/2013 alterou os arts. 288 e 342 do Código Penal, respectivamente, os crimes de quadrilha (agora associação criminosa) e falso testemunho, além de revogar a Lei 9.034/1995.

Passados mais de seis anos de sua vigência, a Lei 12.850/2013 foi alterada pela Lei 13.964/2019 – Lei Anticrime, sobretudo na disciplina da colaboração premiada, na introdução da infiltração policial digital (a distância) e na exigência de maior rigor para o cumprimento de pena de membros de organizeis criminosas.

Direta ou indiretamente, outras leis brasileiras cumprem o papel de normas implementadoras dos mandados convencionais de Palermo, como a Lei de Lavagem de Dinheiro (1998), a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (1999), a Lei de Tráfico de Drogas (2003) o Estatuto do Desarmamento (2006).

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