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A maré de petróleo

O óleo que atingiu as praias e os manguezais do Nordeste revela como é importante que o Brasil seja parte da convenção CLC/1992 e dos tratados sobre os Fundos.

23/04/2020 às 11h30, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras

Em 1967, o navio liberiano Torrey Canyon causou um enorme desastre ambiental na costa inglesa. Seu naufrágio lançou no meio marinho mais de 100 mil toneladas de óleo. Foi então que a comunidade internacional passou a se preocupar mais com os danos causados por derramamento de petróleo no mar.

Devido ao impacto ambiental e à repercussão global do naufrágio do Torrey Canyon, foram negociadas e concluídas a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969 (CLC), e a Convenção para a Prevenção da Poluição Causada por Navios, de 1973 (MARPOL).

Na esteira do derramamento de 1967, também foi aprovada a criação de um fundo internacional de responsabilidade civil, o que se concretizou com a Convenção Internacional sobre a Constituição de um Fundo Internacional de Compensação por Danos Decorrentes da Poluição por Petróleo, 1971 (FUND).

Vários derramamentos em sequência mostraram a necessidade de um regime mais amplo de proteção do meio marinho contra poluição por óleo. Os desastres com os navios Amoco Cadiz (1978), Atlantic Empress (1979), Odissey (1988), Exxon Valdez (1989) e MT Haven (1991) influenciaram a revisão do modelo convencional então vigente.

Por isso, em 1992 a Convenção CLC foi substituída por um novo tratado e foi criado outro fundo, em substituição ao de 1971. Atualmente, a organização International Oil Pollution Compensation Funds (IOPC) gere os fundos sobre poluição por óleo. Infelizmente, o Brasil não é Estado Parte do Fundo.

Não sendo parte dos tratados de 1992 nem do protocolo, o Brasil não pode usar o triplo regime de indenização por danos causados por petróleo. Os fundos cobrem despesas com a limpeza e a recuperação ambiental, danos materiais e danos causados a pescadores e maricultores e ao setor turístico.

As indenizações dos Fundos IOPC, geridos a partir de Londres, podem chegar a USD 295 milhões para os Estados membros do Fundo de 1992, e a USD 1 bilhão para os Estados membros do Fundo complementar. O Brasil está fora desse regime de 3 camadas compensatórias criado entre 1971 e 2003.

O óleo que atingiu as praias e os manguezais do Nordeste revela como é importante que o Brasil seja parte da convenção CLC/1992 e dos tratados sobre os Fundos, para termos melhores condições de defender o meio marinho e cooperar internacionalmente para a prevenção e a responsabilização dos causadores de desastres ambientais.

A internacionalização do caso brasileiro é certa. O derramamento ocorreu fora do mar territorial; os navios suspeitos estavam em alto-mar, fora da jurisdição brasileira e dificilmente retornarão ao Brasil voluntariamente.

Dito isto, nota-se que a apuração criminal e a responsabilização civil do armador, da seguradora e dos demais responsáveis pela embarcação dependem de cooperação internacional.

Como isto se daria? Primeiramente há de se ver que o Brasil tem jurisdição por força da teoria do resultado. Embora a ação tenha-se dado em águas internacionais, o resultado do derramamento atingiu a costa brasileira e seu meio marinho. Aplica-se tanto o art. 6º do CP (teoria da ubiquidade) quanto os arts. 70, §2º, e 72, §2º, do CPP (teoria do resultado).

Na jurisdição brasileira, tal crime ambiental é de competência da Justiça Federal, por força do art. 109, incisos IV, V e IX, da Constituição Federal. Cabe portanto ao MPF e à Polícia Federal obter provas e elementos informativos no Brasil e no exterior, neste caso por meio de pedidos de cooperação jurídica internacional ou por cooperação policial.

O Tribunal Internacional do Direito do Mar, criado pela Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (Montego Bay, 1982), poderá ser utilizado pelo Brasil em face do Estado de registro (da bandeira) do navio causador do desastre ambiental. Este órgão supranacional, com sede em Hamburgo, não tem, porém, competência criminal.

É que a Convenção de Montego Bay, conhecida como UNCLOS na sigla em inglês, impõe certas obrigações aos Estado da “bandeira” da embarcação.

Segundo o art. 92 da UNCLOS, que diz respeito ao estatuto das naus, “Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado.”

De acordo com o §7º do art. 94 da UNCLOS, há um dever internacional de persecução criminal e um correlato dever de cooperar internacionalmente:

Todo Estado deve ordenar a abertura de um inquérito, efetuado por ou perante uma pessoa ou pessoas devidamente qualificadas, em relação a qualquer acidente marítimo ou incidente de navegação no alto mar, que envolva um navio arvorando a sua bandeira e no qual tenham perdido a vida ou sofrido ferimentos graves nacionais de outro Estado, ou se tenham provocado danos graves a navios ou a instalações de outro Estado, ou se tenham provocado danos graves a navios ou a instalações de outro Estado ou ao meio marinho. O Estado de bandeira e o outro Estado devem cooperar na realização de qualquer investigação que este último efetue em relação a esse acidente marítimo ou incidente de navegação.

O dever de cooperação internacional em caso de incidentes marítimos também aparece no art. 217, §§ 4º, 5º e 6º, da UNCLOS.

Se uma embarcação cometer uma infração direito internacional, o Estado de bandeira deve ordenar uma investigação imediata e, se necessário, iniciar procedimentos relativos à alegada infração, independentemente do local em que tenha ocorrido a infração ou “do local em que a poluição proveniente de tal infração tenha ocorrido ou tenha sido verificada.” (§4º).

Conforme o §5º do artigo 217, os Estados de bandeira que realizem uma investigação da infração podem solicitar a ajuda de qualquer outro Estado cuja cooperação possa ser útil para esclarecer as circunstâncias do caso. Cabe aos outros Estados atender aos pedidos apropriadas do Estado de bandeira do navio.

Diz ainda o §6º do artigo em tela que os Estados devem, a pedido escrito de qualquer Estado, “investigar qualquer infração que se alegue ter sido cometida pelas embarcações que arvorem a sua bandeira”. Havendo indícios suficientes para instauração de um inquérito, o Estado de bandeira deve iniciar o quanto antes essa apuração, de acordo com o seu direito interno.

O art. 6º da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, de 1973 (MARPOL) também institui deveres para os Estados, entre eles os de informar e investigar incidentes marítimos e de cooperar para sua apuração. O art. 12 da MARPOL é claro ao estipular que o Estado de bandeira “compromete-se a realizar uma investigação de qualquer acidente ocorrido com qualquer dos seus navios sujeitos ao disposto nas normas, se aquele acidente tiver produzido um grande efeito danoso ao meio ambiente marinho.”

Como se vê, poderá haver duas apurações criminais simultâneas, uma realizada pelo Estado territorial (o Brasil) cujo meio ambiente marinho e regiões costeiras foram atingidas pelo derramamento de óleo e outra conduzida pelo Estado de bandeira do navio causador do desastre ambiental.

Ao final delas, cumpre aos Ministérios Públicos dos Estados com jurisdição sobre o fado definir a jurisdição apta para julgar o caso, isto é, aquela onde melhor se possa atender a boa administração da Justiça. Embora não seja obrigatória, a seleção de uma só jurisdição para a persecução criminal minora a duplicação de esforços processuais e evita bis in idem internacional.

Controvérsias entre os Estados sobre a aplicação da Convenção sobre Direito do Mar devem ser submetidas ao Tribunal Internacional em Hamburgo.

Quanto à responsabilização civil, pode haver a opção por processar o responsável pela embarcação e o proprietário da carga ou, em sendo o caso, suas respectivas seguradoras no Brasil ou no foro pessoal do poluidor, em estratégia de foreign litigation, em ações individuais ou por meio de ações coletivas, inclusive class actions, na jurisdição apropriada.

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