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História institucional do Ministério Público brasileiro (4): MPF ou AGU?

O texto constitucional fora promulgado duas semanas antes. E é este que está vigente desde 1988. Na nova ordem jurídica então inaugurada, não havia mais lugar para um Ministério Público híbrido.

16/07/2019 às 10h08, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras 

Durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), um dos temas mais polêmicos para o desenho do Ministério Público brasileiro envolveu a decisão de a quem caberia a defesa da Fazenda Pública, se ao próprio MP ou a uma procuradoria específica. 

Para os Ministérios Públicos estaduais a questão era clara. Desde a Carta de Curitiba, aprovada em 21 de junho de 1986, no 1º Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e Presidentes de Associações de Ministério Público, as delegações dos Estados haviam firmado a posição de que as Fazendas Públicas estaduais deveriam ter sua própria advocacia. Não deveria caber a promotores de Justiça a representação judicial dos Estados ou de entres de sua administração indireta. Para o MPF, previu-se um modelo diferente.

De fato, o art. 12 (atinente ao MPF, ao MPT, ao MPM e ao MP eleitoral, “ramos” que então compunham o MPU), o art. 13 (relativo aos MPs estaduais) e o art. 14 (sobre o MPDFT) da Carta de Curitiba retratavam o dissenso quanto aos modelos institucionais que adotaríamos:

Art. 12. Ao Ministério Público da União incumbe, ainda, sua representação judicial; nas comarcas do interior, o encargo poderá ser atribuído aos Procuradores do Estado ou dos Municípios.

Art. 13. O Ministério Público Estadual exercerá suas funções junto ao
Poder Judiciário Estadual, aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios ou órgão equivalente, vedada a representação judicial das pessoas jurídicas de direito público.

Art. 14. O Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios exercerá funções junto à Justiça do Distrito Federal e dos Territórios e junto
ao Tribunal de Contas do Distrito Federal ou órgão equivalente, vedada a representação judicial das pessoas jurídicas de direito público.

Se para o MPU, que então compreendia o MPF, o MPT, o MPM e o MP Eleitoral, admitia-se a representação judicial da União (art. 12 da Carta de Curitiba), o design institucional para o MPDFT e para os MPs estaduais seria outro, um no qual estaria vedada a representação judicial das pessoas jurídicas de direito público (arts. 13 e 14 da mesma carta).

Iniciada a ANC, as representações dos MPs brasileiros tiveram forte atuação em Brasília para defender a inclusão de preceitos da Carta de Curitiba no texto constitucional. A atuação da ANPR junto à ANC fora coordenada pelo agora Subprocurador-geral da República aposentado Álvaro Augusto Ribeiro Costa.

Em 13 de abril de 1987, na reunião da Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público, o promotor de Justiça Antônio Araldo Ferraz Dal Pozzo, liderança do MP paulista, tomou a palavra:

O SR. ANTÔNIO ARALDO FERRAZ DAL POZZO:
“…(a) questão de defesa da União e a da criação de um Ministério Público a nível da União que fosse, apenas e tão somente, defensor dos interesses sociais, e não dos interesses privados da União, é uma questão que colocaria da seguinte forma: as sugestões foram elaboradas em três partes distintas. A primeira trata das disposições gerais; depois, abrimos uma parte para o Ministério Público de União e, finalmente, uma última, para o Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Isto porque o Ministério Público estadual não quer – e, aqui, declara enfaticamente – ser representante de nenhuma pessoa jurídica de direito público. Ou seja: o Ministério Público estadual, conforme está escrito aqui, quer, única e exclusivamente, representar os interesses da sociedade. Hoje, o Ministério Público estadual já não representa mais a Fazenda estadual. Apenas, por delegação constitucional, nas comarcas do interior ainda representamos a Fazenda federal. Aqui se pretende cortar esse cordão, que nos liga a uma história do Ministério Público nascido exatamente para defender em juízo os interesses privados do rei – le gens du roi. De lá para cá, o Ministério Público tem cumprido uma trajetória histórica, que se distancia cada vez mais das suas origens. Pretendemos, realmente, conduzi-lo a uma outra direção. Para que seja tão somente representante do interesse da sociedade, para que defenda o regime democrático, a ordem jurídica e a Constituição. No entanto, a parte relativa ao Ministério Público da União retrata o pensamento médio do Parquet federal de hoje. É por isso que encontramos, nesse anteprojeto, a dicotomia de um Ministério Público estadual, que não representa a União nem a Fazenda do Estado, e o Ministério Público da União, que conserva, aqui, nestas sugestões a representação judicial da União. Evidentemente, o descortino político, parlamentar, a vivência dos Constituintes conduzirão o Ministério Público a uma ou outra direção. Esperamos que seja na direção do Ministério Público dos Estados, que é a que defendemos.” (confira aqui
)

Como se vê, o tema era complexo e opunha, de um lado, as carreiras estaduais e, do outro, o MPU, que então era regulado pela Lei Federal 1.341/1951. As lideranças dos Ministérios Públicos das unidades federadas, inclusive do MPDFT, que então não fazia parte do MPU, pretendiam consolidar na Constituição um modelo puro de Ministério Público, vocacionado à defesa da sociedade. Esse formato fora adotado na Carta de Curitiba, a que Dal Pozzo fez referência ao usar a tribuna.

A seu turno, grande parte dos procuradores da República de então e a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), entidade representativa dos membros do MPF, propunham a manutenção do modelo híbrido que vinha desde a Primeira República. O MPF representava também a União em juízo, tanto que o art. 37 da Lei 13.41/1951 assim dizia:

Art. 37. Os Procuradores da República, como advogados da União, defenderão os interêsses desta em tôdas as instâncias, perante a justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, servindo nos feitos mediante distribuição, quanto forem mais de um.

(Arquivo Senado Federal – Povos indígenas nas galerias do Congresso)

Esse desenho institucional seria superado ao longo dos debates na ANC. Na sessão da Comissão de Sistematização, de 17 de novembro de 1987, presidida pelo constituinte Fernando Henrique Cardoso, já se discutiam as consequências da separação das funções do MPF (instituição chefiada pelo Procurador-Geral da República) e da atual Advocacia Geral da União (AGU), que então vinha sendo chamada de Procuradoria-Geral da União. Naquela ocasião, foi dada a palavra ao constituinte Plínio de Arruda Sampaio, também integrante do MP paulista:

O SR. CONSTITUINTE PLÍNIO ARRUDA SAMPAIO: – Sr. Presidente, V. Ex.ª que me conhece desde o Colégio Perdiz, sabe que sempre cumpro com as minhas obrigações. Sr. Presidente, Srs. Constituintes, o historiador que amanhã examinar o trabalho desta Comissão, quando já houver passado a paixão que domina este momento, verá que fomos muito escrupulosos; que fizemos transformações importantes na estrutura deste País sem, em qualquer momento, tomarmos uma atitude precipitada. Todavia, a emenda supressiva que venho defender refere-se a uma atitude precipitada. Quero tomar grandes cuidados ao proferir minhas palavras para não ofender alguém. Não assumo a esta tribuna para lutar contra qualquer grupo de pessoas. Quero apenas dizer que a manutenção dos §§ 3º e 4º do art. 14 das Disposições Transitórias poderá constituir-se numa precipitação que fará cair sobre esta Assembléia a acusação de que agiu no interesse de algumas pessoas, onerando desnecessária e injustificadamente o Erário.

O art. 14 refere-se a um ajuste necessário que se fará na instituição chamada Ministério Público. A origem desse texto explico rapidamente para os Constituintes que não estiveram na Subcomissão do Poder Judiciário. Havia, na Constituição atual, uma instituição chamada Procuradoria Geral da República. Esta instituição era órgão do Ministério Público como fiscal da lei e advogada da União. Na Subcomissão do Poder Judiciário, depois na Comissão dos Poderes, depois aqui, na Comissão de Sistematização, dividiu-se a Procuradoria Geral da República: uma parte ficou sendo Procuradoria Geral da República, com funções de Ministério Público. Só a outra parte passou a constituir um órgão novo, chamado Procuradoria Geral da União, com as funções de exercer a advocacia da União, sua defesa judicial e extrajudicial. Muito bem. Os procuradores de 27 ministérios e de 67 autarquias, procuradores e advogados, entendem que, uma vez se crie esta Procuradoria da União, eles devem fazer parte de seu corpo de servidores. Alegam que, se não o fizerem, se da Constituição não constar isto, eles estarão em uma situação de disponibilidade, dado que a função que exercem passará a ser exercida por outro órgão. Isto é uma argumentação falaciosa. Um órgão tinha as tarefas a e b e vários outros órgãos faziam a tarefa b. Separamos, deste órgão, a tarefa a. Qual é o problema de que ele faça a b e os outros continuem a fazer a b? Nenhum. Agora, nem este prejuízo poderá haver, porque o próprio texto das Disposições Transitórias explica que, 120 dias após a promulgação da Constituição, lei complementar reestruturará a Procuradoria da União. Será a ocasião oportuna para se considerar a eventualidade da conveniência para o Brasil e unir, num só corpo, esses vários corpos de advogados da União.

A Procuradoria-Geral da União (PGU), que depois ganhou o atual nome de Advocacia-Geral da União (AGU), estava prevista no art. 146 do segundo substitutivo, de autoria do relator, o constituinte Bernardo Cabral. A PGU unificaria as carreiras de advocacia do Estado federal, ao passo que ao Ministério Público Federal cumpriria a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses coletivos e individuais indisponíveis.

Art. 146 – A Procuradoria-Geral da União é o órgão que a representa, judicial e extrajudicialmente e exerce as funções de consultoria jurídica do Poder Executivo e da administração em geral.
§1º – A Procuradoria-Geral da União tem por chefe o Procurador-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República, dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

No texto final da Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, prevaleceu a proposta defendida pelos Ministérios Públicos Estaduais e pelo MPDFT. O Ministério Público brasileiro, alçado à condição de instituição permanente e função essencial à atividade jurisdicional do Estado (art. 127 da CF), não faria representação judicial de pessoas jurídicas de direito público (art. 129, IX, CF):

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

No campo federal, doravante tal papel caberia à AGU, criada pelo art. 131 da Constituição, e à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§3º. Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.

Parcialmente vencida naquela ocasião, a ANPR celebrou a nova Constituição num editorial, publicado em 20 de outubro de 1988. Assinado pelo então presidente Roberto Monteiro Gurgel, que depois viria a ser PGR por dois mandatos, o texto ressaltava o papel da Associação na formatação do moderno Ministério Público brasileiro, como propugnaram a Assembleia Geral Extraordinária da entidade, realizada em 30 de agosto de 1984, e as Cartas de Camboriú (1985) e Brasília (1986). No que ora nos interessa, Gurgel dizia:

É certo que, em alguns pontos, de fundamental importância, não obtivemos o que almejamos: a preservação da representação judicial da União e o critério de escolha do Procurador-Geral da República. (…) Das vitórias e dos insucessos, fica, porém, ensinamento inestimável, a ser lembrado no prosseguimento da luta pela complementação, em texto de lei orgânica, da obra, ainda inacabada, da construção do novo Ministério Público: somente o esforço comum, em torno de ideias plantadas, cultivadas e amadurecidas no viveiro do livre convencimento, da solidariedade e da esperança produz frutos imorredouros; somente ele pode superar interesses de ocasião, ressentimentos, saudosismos e pessimismos incuráveis, que, embora não obstruam ad eternum o curso natural do progresso, retardam conquistas inadiáveis e comprometem o bom nome e a grandeza das instituições”.

O texto constitucional fora promulgado duas semanas antes. E é este que está vigente desde 1988. Na nova ordem jurídica então inaugurada, não havia mais lugar para um Ministério Público híbrido.
 

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