Prisão temporária

Debaixo de vara: a condução coercitiva como cautelar pessoal autônoma

Art. 95. As testemunhas, que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara, e soffrerão a pena de desobediencia.

19/07/2013 às 15h21, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir aras

Nas Ordenações Filipinas, os oficiais de justiça podiam conduzir testemunhas e réus recalcitrantes “debaixo de vara”, isto é, à força. No antigo direito português, a vara era a insígnia dos juízes ordinários e dos juízes de fora. Era o símbolo de sua autoridade:
“E os juízes ordinários trarão varas vermelhas e os juízes de fora brancas continuadamente, quando pella Villa andarem, sob pena de quinhentos réis, por cada vez, que sem ella forem achados” (Ordenações Filipinas, Liv. 1, Título LXV).
O art. 95 do Código de Processo Criminal do Império, de 1832, dizia:
Art. 95. As testemunhas, que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara, e soffrerão a pena de desobediencia.
No século XX, a palavra “vara” desapareceu do texto legal como ferramenta relacionada à condução dos desobedientes à presença dos magistrados e o termo passou a designar o local do exercício da função judicante, sinônimo de juízo ou tribunal de primeira instância. Porém, o instituto da “condução sob vara” permaneceu no CPP de 1941, com a finalidade original, mas outra formulação. De fato, de acordo com o art. 218 do CPP:
Art. 218.  Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.
No procedimento do júri, a regra aparece no §7o do art. 411 do CPP: “Nenhum ato será adiado, salvo quando imprescindível à prova faltante, determinando o juiz a condução coercitiva de quem deva comparecer”.
O instituto evoluiu e passou a ser estendido a todo e qualquer depoente recalcitrante que, intimado ou notificado, não comparecesse a um ato judicial ou a uma audiência designada pelo Ministério Público, nos feitos de sua atribuição. De fato, o art. 8º, inciso I, da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar 75/1993) – aplicável, por extensão do art. 80 da Lei 8.625/1993, ao Ministério Público dos Estados — permite a promotores e procuradores “notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência de injustificada”. 
Esta é a primeira espécie – e mais tradicional – de condução coercitiva, ou debaixo de vara, cabível sempre que vítimas, peritos, testemunhas ou declarantes, regularmente intimados (ou notificados), não comparecem ao ato (em geral, uma audiência) nem justificam sua ausência.
A segunda espécie de condução coercitiva é mais moderna e deriva do poder geral de cautela dos magistrados, sendo uma cautelar pessoal substitutiva das prisões processuais. Esta providência não se acha inscrita no rol exemplificativo do art. 319 do CPP.
A condução coercitiva autônoma — que não depende de prévia intimação da pessoa conduzida — pode ser decretada pelo juiz criminal competente, quando não cabível a prisão preventiva (arts. 312 e 313 do CPP), ou quando desnecessária ou excessiva a prisão temporária, sempre que for indispensável reter por algumas horas o suspeito, a vítima ou uma testemunha, para obter elementos probatórios fundamentais para a elucidação da autoria e/ou da materialidade do fato tido como ilícito.
Assim, quando inadequadas ou desproporcionais a prisão preventiva ou a temporária, nada obsta que a autoridade judiciária mande expedir mandados de condução coercitiva, que devem ser cumpridos por agentes policiais sem qualquer exposição pública do conduzido, para que prestem declarações à Polícia ou ao Ministério Público, imediatamente após a condução do declarante ao local da depoimento. Tal medida deve ser executada no mesmo dia da deflagração de operações policiais complexas, as chamadas megaoperações.
Em regra, para viabilizar a condução coercitiva será necessário demonstrar que estão presentes os requisitos para a decretação da prisão temporária, mas sem a limitação do rol fechado (numerus clausus) do art. 1º da Lei 7.960/89. A medida de condução debaixo de vara justifica-se em virtude da necessidade de acautelar a coleta probatória durante a deflagração de uma determinada operação policial ou permitir a conclusão de uma certa investigação criminal urgente.
Diante das circunstâncias do caso concreto, a prisão temporária pode ser substituída por outra medida menos gravosa, a partir do poder geral de cautela do Poder Judiciário, previsto no art. 798 do CPC e aplicável ao processo penal com base no art. 3º do CPP. Tal medida cautelar extranumerária ao rol do art. 319 do CPP reduz a coerção do Estado sobre o indivíduo, limitando-a ao tempo estritamente necessário para a preservação probatória, durante a fase executiva da persecução policial.
De fato, a condução coercitiva dos suspeitos sempre será mais branda que a prisão temporária; a medida restringe de modo mais suave a liberdade pessoal, somente enquanto as providências urgentes de produção de provas (cumprimento de mandados de buscas, por exemplo) estiverem em curso.
Se o legislador permite a prisão temporária por (até) 5 dias, prorrogáveis por mais 5 dias nos crimes comuns, a condução coercitiva resolve-se em um dia ou menos que isto, em algumas horas, mediante a retenção do suspeito e sua apresentação à autoridade policial para interrogatório sob custódia, enquanto as buscas têm lugar. Ou seja, a condução sob vara deve durar apenas o tempo necessário à instrução preliminar de urgência, não devendo persistir por prazo igual superior a 24 horas, caso em que se trasveste em temporária. 
Sendo menos prolongada que as prisões cautelares, a condução coercitiva guarda ainda as mesmas vantagens que a custódia temporária, pois permite que a Polícia interrogue todos os envolvidos no mesmo momento, visando a evitar, pela surpresa, as versões “combinadas” ou que um suspeito oriente as declarações de uma testemunha ou a pressione, na fase da apuração preliminar, ou que documentos ou ativos sejam suprimidos, destruídos ou desviados.
Como vimos, o Ministério Público pode requisitar a condução coercitiva de vítimas e testemunhas (mas não suspeitos ou investigados), sem intervenção judicial, à luz do art. 8º, inciso I, da Lei Complementar 75/93 e do artigo 26, inciso I, alínea ‘a’, da Lei 8.625/93. Porém, a cautelar pessoal autônoma objeto deste post só pode ser determinada pela autoridade judiciária competente, tendo em vista que recai primordialmente sobre o suspeito ou investigado e interfere, ainda que em menor extensão, sobre o seu jus libertatis.
Sobre a condução coercitiva o Supremo Tribunal Federal assim decidiu no HC 107644/SP, relatado pelo Min. Ricardo Lewandowski:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDUÇÃO DO INVESTIGADO À AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO ART. 6º DO CPP. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRISÃO OU DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. DESNECESSIDADE DE INVOCAÇÃO DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR DECISÃO JUDICIAL, APÓS A CONFISSÃO INFORMAL E O INTERROGATÓRIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE. OBSERVÂNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. USO DE ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS IDÔNEAS E SUFICIENTES. NULIDADE PROCESSUAIS NÃO VERIFICADAS. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. I – A própria Constituição Federal assegura, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. II – O art. 6º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. IV – Desnecessidade de invocação da chamada teoria ou doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema Corte norte-americana e e incorporada ao nosso ordenamento jurídico, uma vez que há previsão expressa, na Constituição e no Código de Processo Penal, que dá poderes à polícia civil para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer as funções de polícia judiciária. V – A custódia do paciente ocorreu por decisão judicial fundamentada, depois de ele confessar o crime e de ser interrogado pela autoridade policial, não havendo, assim, qualquer ofensa à clausula constitucional da reserva de jurisdição que deve estar presente nas hipóteses dos incisos LXI e LXII do art. 5º da Constituição Federal. VI – O uso de algemas foi devidamente justificado pelas circunstâncias que envolveram o caso, diante da possibilidade de o paciente atentar contra a própria integridade física ou de terceiros. […]. (STF, HC 107644/SP, relator  min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, publicado em 18-10-2011).
Observe-se que o STF admite a condução do suspeito à Delegacia de Polícia mesmo sem mandado judicial, pois se insere nos poderes de investigação da autoridade policial (poderes implícitos). Em seu voto, o ministro Dias Tóffoli acompanhou o relator Lewandowski e assentou que, no caso concreto, a condução do suspeito “deu-se de forma válida e legal, inserindo-se dentro das atribuições constitucionalmente estabelecidas à polícia judiciária (CF, art. 144, §4; CPP, art. 6, incisos II a VI)“. Fica claro, portanto, que, para a maioria dos integrantes da 1ª Turma do STF, a condução debaixo de vara não se confunde com qualquer forma de prisão cautelar, no sentido de recolhimento celular. Se fosse similar, seria necessária prévia ordem judicial, nos termos do art. 5º, LIV, da CF. Assim, esta modalidade de condução coercitiva, no entendimento majoritário daquela turma da Suprema Corte, é mera consequência do poder-dever policial de determinar o comparecimento de pessoas à delegacia para a tomada de depoimentos. Pode ser entendida também como diligência inerente ao poder-dever de prover segurança pública, semelhante ao que se dá com a retenção de pessoas para a verificação de identidade de cidadãos em bloqueios policiais ou em postos de fronteira, portos e aeroportos.
 É certo que, durante a condução coercitiva, o investigado poderá ser algemado, se necessário, respeitada a Súmula Vinculante 11, mas não deverá ser recolhido a cela alguma, enquanto permanecer sob custódia precária da autoridade policial, para mera averiguação de sua identidade ou de certas circunstâncias do crime ou para investigação sumariíssima derredor do fato. Se a pessoa sob investigação pode ficar presa por (até) 5 dias, nada obsta que sua custódia, sem recolhimento celular, se dê por apenas algumas horas, tempo necessário para localizar a vítima ou seu cadáver, apreender objetos e documentos, congelar ativos, ouvir cúmplices ou testemunhas do fato, realizar o reconhecimento pessoal do suspeito, coletar material biológico para exames ou proceder à identificação criminal do investigado, esta nos termos da Lei 12.037/2009.
Para sua efetivação, a condução coercitiva deve ser necessária para a conclusão das investigações, devendo a Polícia observar as garantias constitucionais do custodiado, como o direito ao silêncio, o direito à assistência de  advogado, o direito à integridade física e o direito à imagem, impedindo-se inclusive a exposição pública do suspeito, salvo por relevante interesse público.
Em suma, nada impede que a Polícia, diante das circunstâncias do caso concreto, que exijam esforço concentrado para concluir diligências investigativas com celeridade, promova a condução coercitiva de investigados, com o aval do Poder Judiciário, mediante prévio requerimento do Ministério Público, na condição de dominus litis e ombudsman geral. Neste cenário, a condução coercitiva, como medida (cautelar) autônoma é muito menos prejudicial ao status libertatis do suspeito ainda presumivelmente inocente do que a prisão temporária e a prisão preventiva, podendo ser tão eficiente quanto a primeira.

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