"A Rua Nova está de luto"

Feira de Santana se despede de Nilton Rasta, grande mestre da cultura afro-feirense, voz da Rua Nova

Nilton Rasta foi um líder comunitário, referência da cultura afro em Feira, pai de oito filhos e muitos outros que a cultura lhe presenteou.

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Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade
Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Foi ao som do berimbau que familiares, amigos e admiradores da cultura afro de Feira de Santana deram o último adeus ao artista Nilton Rasta, percussionista, compositor, artesão, capoeirista e músico do Afoxé Pomba de Malê. Ele faleceu na segunda-feira (29), aos 63 anos, após lutar contra um câncer de próstata diagnosticado em 2024. A despedida, marcada por forte comoção, aconteceu no Cemitério São João Batista, onde o Pomba de Malê tocou os tambores em homenagem ao irmão de caminhada.

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Nascido José Ivanito de Jesus Portela, Nilton construiu uma trajetória ímpar no Mercado de Arte Popular (MAP), onde manteve por 34 anos um box de instrumentos musicais, transformando o espaço em ponto de encontro e aprendizado. Mais do que artista, ele foi líder comunitário, referência da cultura afro em Feira e pai de oito filhos, um deles já falecido.

Nilton Rasta
Foto: Ney Silva/ Acorda Cidade

Antes de se tornar uma figura de múltiplos talentos e de uma generosidade típica da Rua Nova, Nilton era um pai acolhedor, como contou um dos filhos, Guilherme Oliveira, ao Acorda Cidade.

“Meu pai era uma pessoa que, nos momentos mais difíceis, me acolhia; nos melhores, ele me acolhia; nos de puxar a orelha, mais ainda. Ele me olhava assim de canto, aí falava: ‘Guilherme, vem cá agora.’ Me reclamava, tudo na base do diálogo, ele sempre foi dessa forma, nunca gostou de confusão. Sempre lutou pela política de Feira, surtiu grandes efeitos pelo Mercado de Arte. Era uma pessoa que acolhia todo mundo”, contou o filho.

Guilherme Oliveira | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Para o filho, mesmo levando seus talentos além das fronteiras do país, o artista manteve o foco na comunidade da Rua Nova até o fim. “O coração imenso, todas as pessoas que tinham contato com meu pai sempre aprendiam alguma coisa, então ele é um grande professor. No lado profissional ele é de grande relevância no Brasil todo e até no exterior, como quando foi para o Japão alguns anos atrás. Era um cara desse nível aí.”

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Guilherme também destacou o vínculo profundo do pai com a Rua Nova, bairro em que Nilton cresceu, se criou e trabalhou para que a história não se perdesse. “Ele estudava a Rua Nova já tem vários anos. Ele falava como foi criada, o porquê do nome, quem era a dona da fazenda. Todo esse legado ele deixa. Todo mundo queria aprender percussão, sair do lado ruim da vida. Ele acolheu e transformou a vida dessas pessoas pela percussão. Então a Rua Nova tem um grande carinho pelo meu pai justamente pelo que ele fez por ela”, afirmou ao Acorda Cidade.

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

A pedagoga e amiga Hely Pedreira recorda que cada encontro com Nilton era uma aula. A parada no box dele, no Mercado de Arte, era encontro certo para uma conversa enriquecedora.

Hely Pedreira | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

“Ele trazia muitos aspectos importantes para a gente refletir sobre a conjuntura política, cultural, tanto da cidade quanto do país. Era um homem muito antenado, um homem à frente de todo o seu tempo, sem contar com o fazer artístico dele, que acho que era a substância de vida dele. Deixa uma lacuna enorme nos nossos corações, porque vai para além do expoente artístico, mas do ser humano. Nilton, que era aquela figura emblemática, era complexo, múltiplo, com a cabeça cheia de ideias e um coração enorme, muito contundente na defesa daquilo em que acreditava”, afirmou.

Companheira de trabalho no MAP, Cida da Silva se emocionou ao falar da convivência diária com o artista. Ela fez questão de prestar uma última homenagem.

Cida Silva | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

“Nilton era uma pessoa muito boa. Sempre tive amizade com ele, me tratava bem, eu tratava ele bem também. Trabalhar com ele era divertido, a gente conversava muito, brincava, pilheriava. Ele era apaixonado pela Rua Nova e pela banda dele, os tambores dele. Era maravilhoso”, disse Cida.

O professor e ex-vereador Jhonatas Monteiro destacou que Nilton se tornou uma referência cultural incontornável para quem visitava Feira de Santana.

Jhontas Monteiro | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

“A trajetória dele, a caminhada dele, é de uma riqueza muito grande. E não é à toa que ele se tornou uma referência de cultura para todo mundo que conhecia Feira de Santana. Sabia que um ponto incontornável era justamente conversar com o Nilton, aprender com ele. Poucos minutos com ele iluminavam qualquer questão que você tinha, era algo muito visível para qualquer um que conversou com ele”, disse Jhonatas.

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

O Rasta criou diversos grupos e iniciativas na Rua Nova e tornou-se uma liderança comunitária respeitada. Para Jhonatas, o desafio agora é preservar essa história e manter viva a memória dele na cultura da cidade.

O secretário estadual de Cultura, Bruno Monteiro, também esteve presente na despedida. Em algumas palavras, ele reforçou a importância do artista para inspirar gerações de fazedores de cultura, de artistas e gestores culturais.

Bruno Monteiro | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

“É um dos grandes nomes da cultura feirense, pela sua arte, por mais de três décadas de dedicação à cultura, desde o reggae da Rua Nova, da capoeira, do Pomba de Malê, mas especialmente por uma trajetória militante, de muita conciliação, um espírito muito generoso sempre. As minhas experiências com ele sempre foram de muito aprendizado e de uma visão dele sempre de compor, de querer atender ao máximo de pessoas e ter uma ideia generosa também com o conjunto da cultura.”

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

A importância para o Afoxé Pomba de Malê

Micareta de Feira 2025
Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Nilton Rasta foi um dos propulsores do Afoxé Pomba de Malê, que completa 40 anos neste ano, ao lado de nomes como Gilberto Bolão e seu pai, Valquí Portela.

Raimundo Nunes Silva, o artista feirense Nunes Natureza, que participou da fundação do grupo, expressou a dor pela perda do amigo.

Nunes Natureza | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

“É um momento de tristeza, é uma perda irreparável. Para nós, da cultura, que vivemos na Rua Nova, com esse legado de Nilton, professor de percussão. A criançada, ele sempre botando no bom caminho, através da música, dos saberes dele, como percussionista, luthier. É realmente uma perda irreparável para a comunidade da Rua Nova. A Rua Nova está de luto, com a perda de Nilton Rasta”, declarou Nunes.

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Erivaldo Santos da Silva, também fundador do Afoxé e amigo, reforçou o papel de mestre para a Rua Nova.

Erivaldo Souza | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

“Sempre foi um professor na capoeira, na arte que ele praticava. Então ele deixou um bom legado aí para quem ficar resgatar e saber preservar esse lado cultural. Que apareça alguém que tenha essa mesma cultura, essa mesma coragem e essa fé. Ele me ensinou um bocado de coisa, principalmente um pouco de educação.”

O cantor Paulo Bindá, amigo de longas datas e parceiro musical, fez um discurso bastante emocionado durante o velório. Ao Acorda Cidade, ele relembrou grandes momentos vividos nas Micaretas de Feira, onde puderam trabalhar juntos.

“Quando você perde um amigo, um colega de trabalho, principalmente como o Nilton era, ele tinha exemplos sempre a dar de uma vida mais regrada, de alimentação, ele não bebia, não fumava. Ele foi acometido por uma doença como essa, que qualquer um de nós podemos pegar, e ele lutou. Ele deixa uma lacuna para a cultura feirense, principalmente para a cultura de matrizes africanas.”

Paulo Bindá | Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Bindá fez uma homenagem durante o sepultamento, cantando uma das músicas favoritas de Nilton, Meia Lua Inteira, de Caetano Veloso. “Ele adorava essa música, ele sempre falava: ‘Bindá, bota essa música no repertório’, e eu fiz agora a homenagem a ele. Coloquei o nome dele numa música minha, Diz é de Feira, em que eu falo: ‘Vai no Mercado de Arte e não vê Nilton Rasta tocando seu berimbau'”, relembrou o cantor.

A amiga Hely Pedreira finalizou com um apelo, um dos últimos do legado de Nilton, um defensor da cultura afro e, acima de tudo, da vida.

“Mas até nesse momento ele deixa uma lição, deixa um legado. Não falo no artístico, mas na vida mesmo, para dizer para os homens: se cuidem. Cuidem da sua saúde, cuidem enquanto é tempo, para que a gente não precise mais estar chorando essa dor de perder nossos maridos, companheiros, irmãos. Os homens, de uma forma geral. Porque é muito doloroso para quem fica.”

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Entre muitos ensinamentos, Feira de Santana se despede de Nilton Rasta com homenagens dignas de sua grandiosidade como ser humano. Sua partida deixa uma ausência irreparável, mas sua voz, seu ritmo e sua generosidade permanecem como guia para aqueles que resistem fazendo a cultura acontecer na Princesa do Sertão.

Na Rua Nova, no Mercado de Arte Popular, no Pomba de Malê e no coração de quem aprendeu com ele, há a certeza de que Nilton Rasta vive.

Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade
Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

Com informações e produção da jornalista Jaqueline Ferreira do Acorda Cidade

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