
O professor de história Jhonatas Monteiro participou da marcha do Dia da Consciência Negra, realizada neste 20 de novembro, em Feira de Santana. Durante o evento, que reuniu diversas entidades e integrantes de grupos ligados ao movimento negro, o ex-parlamentar feirense deu uma verdadeira aula sobre o que foi o monstruoso processo de escravização de pessoas negras no território brasileiro.
Monteiro lembrou que a escravização tem uma forte ligação com o próprio surgimento do que viria a se tornar a nação Brasil. O professor enfatizou que documentos históricos e oficiais datam que, pouco tempo após a chegada dos portugueses no território, fato que ocorre em 1500 d.C., se institucionalizou um modelo de comércio de pessoas negras, sequestradas no continente africano, para trabalharem de forma forçada nas terras da Coroa.
“Inicialmente, utilizando muito da mão de obra indígena, que é algo que é importante ser lembrado, os povos indígenas também foram escravizados, isso de 1530 até 1888, ou seja, mais de 350 anos durou essa escravização. As pessoas eram tratadas como objetos, como uma mercadoria a ser negociada. Muitos negociantes conseguiam financiamento na Europa para aprisionar pessoas no continente africano, trazer para a América, aqui carregavam com outras mercadorias como açúcar, por exemplo, e seguiam para a Europa e depois recomeçavam esse mesmo ciclo. E ganharam muito dinheiro com esse tipo de negócio, tratando pessoas como objetos, como mercadorias”, disse o professor.
Sem humanidade
Durante a entrevista ao Acorda Cidade, Jhonatas também falou sobre os chamados navios negreiros, embarcações que eram responsáveis por transportar os negros capturados. Os livros de história mostram que esses barcos eram verdadeiras tumbas a céu aberto, pois não tinham, nem de longe, as condições mínimas necessárias de salubridade para fazer esses trajetos que duravam meses. O professor lembrou que essas pessoas vinham aglomeradas, muitas vezes misturadas com os próprios excrementos, como restos de fezes, vômitos e urinas, e, ainda assim, não recebiam nenhuma alimentação adequada.
“Muitos deles adoeciam por falta de vitamina C, o chamado escorbuto, mas também tinha a própria depressão muito profunda, que era chamada na época de banzo. Essas e outras questões marcavam essa viagem que era terrível porque uma boa parte das pessoas morria no caminho, a tal ponto que o traficante de escravos era chamado de tumbeiro porque o navio era considerado uma tumba, como um túmulo, porque eles vinham literalmente trazendo uma tumba, um lugar com pessoas mortas da África pra cá. Então era uma condição realmente terrível do ponto de vista de qualquer coisa que a gente possa pensar que é a humanidade”, disse o professor.
Carne podre
O jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor da trilogia Escravidão, durante uma entrevista concedida ao programa Roda Viva em 2022, falou um pouco sobre o processo de monstruosidade que a população negra sofreu ao longo do período em que foi escravizada no Brasil. Ao ser questionado sobre como foi o processo de construção das obras, o autor descreveu os relatos de monstruosidade a que teve acesso.
“Tinha pessoa que chegavam ao Brasil, a bordo de um navio negreiro, com cinco marcas de ferros quentes, de ferro em brasa (o que indicava propriedades). Havia punições que envolvia cortar um pedaço da orelha, levar 200, 300, 400 chibatadas, às vezes 500 chibatadas. Houve quilombos que foram dizimados, aniquilados pelas forças da Coroa Portuguesa”, disse o autor.
Gomes também revelou, durante uma entrevista no programa Conversa com Bial, que o grande número de cadáveres de pessoas escravizadas que morriam durante as viagens nos chamados navios negreiros, e que eram lançados ao mar mudou o comportamento dos cardumes de tubarões no Oceano Atlântico, que passaram a seguir os navios em busca de alimento. A mudança exemplifica a brutalidade do período, que pode ter resultado em cerca de 1,8 milhão de corpos jogados ao mar.
“O índice de mortes era muito alto, pelas condições que eram as piores possíveis. E muitas vezes o descarte dos corpos se dava em meio a essa viagem que durava meses. A Bahia é um estado de maioria negra, ainda hoje, na verdade, é o estado que concentra a maior população negra fora do continente africano, no mundo todo. E a Bahia foi um dos principais pontos desse processo de entrada das pessoas vindas de África para cá”, disse Jonathas.
“Evidente que essa história da escravização também é marcada por resistência. Porque desde a chegada dessas pessoas aqui no nosso continente, nossos antepassados, houve luta contra isso. Não à toa, o quilombo dos Palmares é um quilombo que se estabelece muito cedo na história brasileira. E o quilombo dos Palmares não é algo pequeno como as pessoas pensam. Os quilombos, como Palmares, eram grandes locais que muitas vezes superaram as cidades oficiais. O quilombo dos Palmares, por exemplo, foi maior do que Salvador, que era a própria capital do país”, complementou o professor.
Declínio da escravidão
Monteiro aproveitou o momento para falar como foi o processo de declínio do período de escravização de pessoas negras no Brasil. O professor explicou que dois grandes fatores, um externo e um interno, contribuíram diretamente para o fim do processo mais brutal para a população negra no território.
“À medida que o capitalismo foi avançando no mundo, a Inglaterra e alguns outros países que já eram capitalistas, inclusive com indústrias, buscavam lugares no mundo onde pudessem desaguar a sua mercadoria. E, para que as pessoas possam comprar mercadorias, você precisa ter salário, você precisa ter uma mão de obra assalariada para ser consumidora. E aí a Inglaterra foi um dos países que mais se beneficiou com a escravização, mas também um dos países que, a certa altura, vai mais pressionar pelo fim dessa mesma escravização, porque agora tem interesse que a mão de obra brasileira seja uma mão de obra assalariada para poder consumir os seus produtos”, disse Jonathas.
“Mas também houve um fator interno, que são as resistências e as lutas do próprio povo em condição de escravização, os trabalhadores, trabalhadores escravizados nunca aceitaram passivamente. O Brasil é marcado por experiências de quilombos, por fugas individuais e coletivas. Às vezes as pessoas chegavam ao limite de até se suicidar para se recusar a viver naquela vida de cativeiro. A gente teve muitas revoltas diversas na história do país que pautaram, que reivindicaram o fim da escravização. Aqui a Bahia, por exemplo, teve a Conjuração Baiana no final do século XIX, no finalzinho dos anos 1700, que já defendia o fim da escravidão. A gente teve a Revolta dos Malês em 1835”.
O professor de história complementou. “No final do século XIX, principalmente a partir de 1870, você tem um abolicionismo, que é um movimento que vai ganhar uma certa adesão da sociedade, que defende o fim da escravidão. Inclusive o abolicionismo tem várias figuras negras que são lideranças. Uma delas é Luiz Gama, que é um baiano que nasceu aqui, foi escravizado, apesar de ter nascido livre, e se alfabetizou sozinho, se tornou advogado prático, que era chamado de rábula na época, e ele se libertou provando que sua escravidão tinha sido ilegal e libertou mais de mil outras pessoas também, na justiça, mesmo do período da escravização”.
Com informações do repórter Ney Silva, do Acorda Cidade
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