Princesinha do Sertão

Da força do comércio à potência de sua identidade, Feira de Santana celebra 192 anos de história 

A pequena Fazenda Sant’Anna dos Olhos d’Água, se tornou a segunda maior cidade do estado e a maior cidade do interior do nordeste.

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Feira de Santana tem mais de 600 mil habitantes
Foto: Divulgação

Neste 18 de setembro, Feira de Santana completa 192 anos de emancipação política. A “Princesa do Sertão” carrega em sua trajetória a marca da resistência, do trabalho e da devoção que moldaram sua identidade cultural e a transformaram em um dos mais importantes polos urbanos e econômicos da Bahia.

Museu do Comércio | Foto: Paulo José/Acorda Cidade
Museu do Comércio | Foto: Paulo José/Acorda Cidade

As raízes do município remontam ao século XVIII, quando foi fundada a Fazenda Sant’Anna dos Olhos d’Água, propriedade do casal Domingos Barbosa de Araújo e Anna Brandoa, onde atualmente existe o Casarão dos Olhos D’Água, considerado a primeira habitação de Feira de Santana. Situada entre o sertão e o Recôncavo, especialmente em direção ao porto de Cachoeira, a fazenda se tornou ponto de descanso para tropeiros, vaqueiros e comerciantes. Graças às nascentes de água e ao movimento constante de viajantes, surgiu ao redor da capela dedicada à Senhora Sant’Ana um povoado que cresceu em torno das feiras de gado, atividade que deu nome à cidade e se transformou no motor da sua economia.

Feira de Santana
Casarão dos Olhos D´Água, considerado a primeira habitação de Feira de Santana | Foto: Reprodução/Memorial da Feira | Prefeitura de Feira de Santana

O local prosperou de tal forma que, em 1832, foi elevado à categoria de vila, recebendo o nome de Vila de Feira de Sant’Anna. A emancipação política, celebrada em 18 de setembro daquele ano, serviu para solidificar sua importância regional. A cidade se tornou um centro vital para o escoamento de produtos do sertão e um ponto de convergência para rotas que conectavam diferentes partes do Brasil. Seu entroncamento estratégico transformou Feira em um entreposto comercial e logístico fundamental, servindo como a principal ligação entre a capital, Salvador, e o interior do estado.

A pequena Fazenda Sant’Anna dos Olhos d’Água, se tornou a segunda maior cidade do estado e a maior cidade do interior do nordeste.

Feira de Santana
Feira livre | Foto: Reprodução | Prefeitura de Feira de Santana

Ao Acorda Cidade, a historiadora Márcia Sueli Oliveira do Nascimento, doutoranda em História e pesquisadora da trajetória da cidade, ressaltou a importância das primeiras rotas comerciais.

“Foram justamente as estradas de boiada e o comércio de gado de feira que atraem as pessoas para o município, expandem a cidade, uma pequena vila começa a se formar em uma cidade, uma cidade que é promotora de um futuro próspero por causa do gado, por causa do comércio, e isso atrai os coronéis e atrai também muitos visitantes.”

Feira de Santana
Matriz de Sant´Anna, ainda sem as torres | Foto: Reprodução/Memorial da Feira | Prefeitura de Feira de Santana

O crescimento contínuo levou a vila a ser elevada à categoria de cidade em 1873, adotando o nome de Feira de Santana. O ciclo do gado, que havia impulsionado seu nascimento, continuou a ser o alicerce de sua economia por muitas décadas.

A famosa Feira do Gado, que se realizava no centro da cidade, era um evento de grande porte que atraía milhares de pessoas e movimentava a economia local e regional. Com o tempo, essa dinâmica de comércio se expandiu para outros setores, como a venda de cereais, tecidos e artesanato, consolidando Feira como um dos maiores centros de abastecimento do interior baiano.

A pesquisadora, que atua há 33 anos na rede básica de ensino, também destacou como essa herança moldou o caráter econômico da cidade, que, por muitas vezes, ofuscou a cultura existente na cidade.

Professora Márcia Sueli
Historiadora Márcia Sueli | Foto: Ney Silva/Acorda Cidade

“Feira é traduzida por ser uma cidade comercial. Tanto que isso às vezes esconde o potencial cultural que a cidade tem. Ela vive do comércio, da prestação de serviços e é fruto de muito trabalho. Tanto o comércio de rua, que temos que levar em consideração que foram os feirantes que começaram a expandir essa cidade, como os comerciantes dos grandes estabelecimentos. Feira é um entroncamento, tem essa logística de vendas e ainda é um polo em relação às demais cidades do interior”, explicou a professora ao Acorda Cidade.

Museu do Comércio | Foto: Paulo José/Acorda Cidade
Museu do Comércio | Foto: Paulo José/Acorda Cidade

O desenvolvimento urbano e a identidade sertaneja

A urbanização de Feira de Santana, especialmente a partir da metade do século XX, trouxe uma nova fase na história da cidade.

A abertura de grandes avenidas transformou o traçado da cidade e impulsionou o crescimento para além do que se via antes. No entanto, essa expansão urbana trouxe consigo desafios sociais. A professora Nascimento explica que o planejamento urbano, muitas vezes, segregou a população.

Foto: ACM

Segundo a professora, até a década de 50, as maiores áreas do município estavam em torno da Igreja da Matriz.

A partir dos primeiros planejamentos urbanos, no final da década de 60, por meio do governo João Durval, houve as primeiras mudanças urbanas em Feira, com a criação de grandes avenidas como a Getúlio Vargas, a Senhor Passos e Maria Quitéria.

Esses movimentos de urbanização e planejamento da cidade foram retirando os grupos historicamente excluídos para as periferias.

Feira de Santana
Avenida Senhor dos Passos, década de 1930 | Foto: Reprodução/Memorial da Feira | Prefeitura de Feira de Santana

“Porque se realocam os sujeitos que não queremos ver no centro, a gente retira e coloca nos bairros mais distantes. E aí formam-se as primeiras periferias. Então, é preciso que se veja essa dinâmica”, afirma Márcia.

“Nesse movimento de periferia, no caso dos negros, a gente ainda percebe nos bairros periféricos os pedromínios deles. No caso dos ciganos, eles começam a ser relocados, e aí eles saem do município em direção às cidades do interior. Mais interior ainda do que Feira de Santana. Então, isso começa a tomar um rumo para as regiões de Serrinha, região de Itaberaba. Então, vocês começam a ver uma retirada desse lugar”, acrescentou a professora em entrevista ao Acorda Cidade.

Praça Dom Pedro II, julho de 1952, atual Praça do Nordestino e onde funcionou o antigo Campo do Gado | Foto: Reprodução/Memorial da Feira | Prefeitura de Feira de Santana

O legado cultural e a celebração da história

A identidade de Feira de Santana, forjada no entrelaçamento do comércio com a cultura sertaneja, é celebrada em diversas manifestações. A Exposição Agropecuária de Feira de Santana (Expofeira), por exemplo, continua a ser um evento que resgata a tradição da pecuária, mostrando que a herança do gado ainda pulsa no coração da cidade.

Outras manifestações, como a Micareta, a mais antiga do Brasil, e o São João, considerado um dos primeiros do interior baiano, revelam o caráter festivo e a riqueza cultural da Princesa do Sertão, que se tornou um ponto de encontro de diferentes ritmos e tradições.

Arrastão da Micareta de Feira 2025 com Thiago Aquino e Timbalada
Foto: Beatriz Rosado/Acorda Cidade

E as influencias do passado não param por aí. A Feira de Santana de hoje, após quase duas décadas, se transformou, resistindo para não perder suas raízes. A cidade conta com museus, parques, espaços culturais que lutam para provar que a tradição e a modernidade podem caminhar juntas, fazendo de Feira uma cidade vibrante e completa.

São expressões como a Flifs, Festival Literário e Cultural de Feira de Santana, um dos eventos culturais mais importantes da cidade e da região que celebra 18º edição levando arte, literatura, cultura e conhecimento para toda a população.

Flifs 2024
Foto: Ighor Simões

Segundo Márcia Sueli, mesmo com o passar das décadas e a evolução do status de cidade, em Feira de Santana existe um movimento comercial em torno da pecuária, não mais como antigamente, quando as boiadas tomavam as estradas seguindo caminho do campo do gado.

“A economia de feira ainda é marcadamente o mercandejar, é de comércio e a gente ainda tem, sim, a questão da pecuária. Tanto que as expofeiras da cidade ainda fazem uma grande movimentação. Por quê? Porque, apesar de não ter mais a visibilidade que se tinha economicamente, a gente ainda tem em nosso retorno, a parte da agricultura familiar e a parte da pecuária ainda existente. Então, ela precisa ser levada em consideração.”

movimentação comércio natal (2)
Foto: Paulo José/Acorda Cidade

Para a professora, é preciso que a memória da cidade dê o devido crédito aos habitantes que aqui construíram suas histórias, mas também o legado histórico da Princesa do Sertão. São povos indígenas e quilombolas que não estão nos livros de história.

“A Feira precisa da visibilidade aos sujeitos que foram retirados de sua história. A gente recebeu, sim, um povoado, populações negras, populações indígenas, e que não são colocadas na história da cidade, e que formaram também essa cidade enquanto uma cidade de comércio. E o que ela deve levar para o futuro é que, por ser uma cidade de trabalho, ela precisa continuar a ter o comércio forte, mas ela precisa também garantir cultura, garantir lazer e garantir a preservação do seu patrimônio histórico e da sua história.”

Feira do amanhã: os desafios e estratégias para o crescimento urbano dos 192 até os 200 anos
Foto: ACM/Prefeitura de Feira

Ao longo de quase dois séculos, Feira de Santana consolidou sua posição não apenas como um polo econômico, mas como um caldeirão cultural, onde a tradição do sertão se une à modernidade urbana.

A Princesa, com sua história de trabalho, resistência e adaptação, continua a ser um símbolo da força do povo baiano com nomes importantes em sua história como Maria Quitéria, Germiniano Costa e Lucas da Feira. Essa potência segue em construção, com uma memória viva sendo levada para o mundo através de artistas como Russo Passapusso, Rachel Reis, Duquesa e tantos outros, de tantas áreas que segue orgulhando essa grande cidade do interior.

A trajetória de Feira de Santana é um lembrete de que a verdadeira riqueza de uma cidade não está apenas em seu crescimento material, mas na preservação de sua memória, na valorização de sua gente e na celebração de sua identidade única.

Com informações do repórter Ney Silva do Acorda Cidade

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