192 anos de Feira de Santana

Coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana

Neste aniversário, a cidade celebra em dobro pelo reconhecimento oficial do bairro Rua Nova como Bem Cultural e Imaterial

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O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Arquivo Pessoal

Feira de Santana completa 192 anos nesta quinta-feira (18) reafirmando sua identidade como a Princesa do Sertão, marcada pela diversidade cultural, pela força de seu povo e por histórias que atravessam gerações. Neste aniversário, a cidade celebra em dobro pelo reconhecimento oficial do bairro Rua Nova como Bem Cultural e Imaterial, por meio da Lei nº 4.313, sancionada em 12 de agosto deste ano.

O título, fruto do projeto do vereador Galeguinho SPA, simboliza o que os feirenses já sabiam há muito tempo, que a Rua Nova é muito mais que um bairro, é território da resistência afro-brasileira, berço de tradições, celeiro de artistas e palco de manifestações que ajudam a moldar e construir todos os dias a identidade da cidade.

Do legado de Dona Pomba à formação de um território negro

A história da Rua Nova começa com Ernestina Carneiro Ferreira de Almeida, conhecida como Dona Pomba. Mulher negra, de uma generosidade ancestral, ela abriu suas terras para acolher famílias que buscavam moradia e dignidade, vendendo lotes a preços acessíveis ou permitindo que construíssem suas casas e pagassem quando pudessem.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Divulgação/Secom/PMFS

“Dona Pomba e suas irmãs eram pessoas muito boas, caridosas, de boa vontade. Aquelas pessoas que ainda naquele período eram mais próximas, remanescentes dos escravos e ganharam liberdade, mas uma liberdade que eles saíram sem direito a nada, passaram a viver de emprego aqui e por lá, sem uma habitação. Chegando aqui na Rua Nova, Dona Pomba vendia o terreno num preço bom. Dividia as prestações a sumir de vista. Outros, ela dizia: ‘não, more aí, faça a sua casa e depois vai acertando.’ Aquela coisa de boa vontade. Então, a prefeitura, na época, não sei se algum fazendeiro ou quem, criou essa Rua Augusto dos Anjos. Um trator abriu, uma linha de ônibus passou a operar na Rua Nova e criou o nome Rua Nova. Por causa dessa rua, que hoje chama-se Augusto dos Anjos, passou a existir e botaram o nome Rua Nova. E daí ficou”, contou um dos grandes nomes do bairro, o músico Jorge de Angélica, em um dos seus últimos depoimentos registrados em documentário.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Divulgação/Secom/PMFS

Esse gesto de altruísmo transformou a Rua Nova em um verdadeiro quilombo urbano, um espaço onde a coletividade afrodescendente fincou raízes e se consolidou até os dias de hoje como um território de fé, luta, identidade e muita cultura.

A Trilogia do Reggae e a Potência Cultural da Rua Nova

Se o Recôncavo Baiano é reconhecido pelo samba, a Rua Nova é celebrada como o berço do reggae no Brasil. Do bairro nasceram vozes que ecoaram para o mundo, como a chamada Trilogia do Reggae Feirense.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Divulgação/Secom/PMFS

Jorge de Angélica, apontado por muitos como o primeiro cantor de reggae do país, uniu música e resistência em canções como Sopa de Papelão, Bahia Negra, Gari e a lendária Cobra Coral. Quem pode conviver com ele, sempre vai lembrar da sua força quando dizia “Jesus com a gente” para mudar qualquer situação. 

Foto: Arquivo pessoal

“O reggae tem uma função, denunciar, provocar e divergir, porque o reggae não é aquela música que vai estar cantando qualquer molequeira; tem esse lado social, religioso e musical que é denunciar as mazelas da sociedade. O reggae só é reggae quando ele cita a verdade acima de tudo”, declarou o artista em entrevista ao Acorda Cidade em maio de 2023, mesmo ano em que partiu aos 64 anos.

Dionorina, por sua vez, levou desde cedo o som da Princesa do Sertão para palcos internacionais e, até hoje, mantém viva a identidade do reggae de Feira. Já Gilsam, cantor, compositor e instrumentista, define o reggae produzido na cidade como um “dispositivo de equalização social”.

Jorge,de,angelica, gilsam e tonho dionorina
Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade

A música criada por eles na Rua Nova não surgiu apenas para ser ouvida, mas para transformar realidades, sobretudo da população negra, historicamente marginalizada, por meio do trabalho social construído por esses artistas.

Para Gilsam, o título de patrimônio imaterial da Rua Nova vem para fortalecer esse legado de resistência construído com muito suor por esses agentes culturais.

Gilsam na Micareta
Foto: Divulgação

“Pela sua contribuição em relação à cultura afro-brasileira, de forma específica, à cultura afro-feirense. Rua Nova, que é esse celeiro, esse polo artístico-cultural riquíssimo, que muitos artistas saíram daí, conseguiram fazer o trânsito para outros países, outras cidades, enfim. Então, a Rua Nova também, historicamente, é um bairro que foi muito estigmatizado e hoje a Rua Nova é ressignificada por via desses agentes culturais. É parabenizar e dizer que é possível quando a gente quebra essas armadilhas, essas amarras estruturais conjunturais. Parabéns Rua Nova”, celebrou o artista.

Cultura afro-brasileira no RN: blocos, terreiros, escolas de samba e futebol 

Além do reggae, a Rua Nova pulsa como um dos mais importantes centros de cultura afro-brasileira de Feira de Santana. Foi lá que nasceram a histórica escola de samba Escravos do Oriente, de Mamãe Socorro, a liderança da ialorixá Helena do Bode e os blocos afros como Filhos da África, Zimbabuê e o Afoxé Pomba de Malê, que este ano celebrou 40 anos de história.

Micareta de Feira 2025
Foto: Jaqueline Ferreira/Acorda Cidade
O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Helena do Bode | Foto: Divulgação/Secom/PMFS

O bairro também abrigou importantes terreiros de candomblé, espaços que ainda hoje mantêm viva a espiritualidade ancestral. Da mesma atmosfera surgiram nomes como Nilton Rasta, Libu do Reggae, Joh Ras, Paula Sanfer e Zé das Congas, que reforçam a grandeza artística do território.

Trilogia do Reggae
Trilogia do Reggae | Foto: Divulgação

“Eu vejo a Rua Nova como um exemplo para outros bairros, pela sua educação cultural, musical e acolhedora. Desde o seu início, ele sempre foi receptivo com todos que vieram morar aqui”, disse Zé das Congas ao Acorda Cidade.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Arquivo Pessoal

O percussionista é um dos grandes nomes do bairro. Ele reforça o quanto a Rua Nova é um exemplo para outros bairros da cidade por sua “educação cultural, musical e acolhimento”.

O multiartista contou que é perceptível a diminuição dos terreiros da região, mas celebra a força dos projetos sociais e artísticos, que continuam a transformar a realidade do bairro. A visão dele ecoa o sentimento de muitos moradores que escolheram o bairro para chamar de lar: a Rua Nova não é um bairro “perigoso”, mas um bairro que, por vezes, é “violentado” pela falta de acesso a serviços básicos.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Arquivo Pessoal

“Eu vejo uma transformação pois antigamente o pessoal tinha medo do bairro, onde dizia que era violento, e hoje o pessoal não só traz cultura musical, mas também esportes. A mudança começou através dos Cras, projetos sociais e da base da polícia que traz mais segurança para o bairro, o tornando um lugar seguro e cultural.”

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Divulgação/Secom/PMFS

Outro sucesso na história da Rua Nova, foi o futebol, inicialmente impulsionado por Paulo Brasileiro no campo Beira Riacho, onde hoje está o estádio. Com a chegada de Edmilson Amorim, o Michelinho, o Flamengo da Rua Nova se destacou, especialmente com o time feminino tricampeão baiano e representante baano em competições nacionais. O clube revelou cinco atletas para a Seleção Brasileira, incluindo a grande Sissi, considerada por muitos uma das melhores jogadoras do Brasil de todos os tempos.

Educação, memória e futuro

A força da Rua Nova atravessou os limites do bairro e chegou às escolas. Em 2022, a professora Márcia Suely Oliveira do Nascimento, do Colégio Estadual Dr. Jair Santos Silva, desenvolveu com seus alunos o projeto A forma urbana negra do bairro da Rua Nova: ancestralidade, territorialidade e identidade africana em Feira de Santana. O trabalho interdisciplinar conquistou o 2º Prêmio Déa Fenelon da Anpuh, em 2023, e resultou em um e-book e documentário que registraram a memória da comunidade. Veja aqui abaixo.

O reconhecimento atual do bairro também reacende debates sobre a preservação do Casarão de Dona Pomba, em ruínas, mas que poderá se transformar em um Centro Cultural Popular.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Divulgação/Secom/PMFS

Para o vereador Galeguinho, a lei é fundamental justamente para fomentar o futuro do bairro e a memória de quem construiu e constrói até hoje.

Vereador Galeguinho explica porque obras de asfaltamento no Vila Olímpia estão paradas
Foto: Paulo José/Acorda Cidade

“A ideia de ter criado esse projeto é valorizar ainda mais os artistas existentes ali, em uma dimensão incrível de diversos segmentos: do afro, do rock, do axé, do forró, do reggae, das movimentações culturais ainda vivas em nossa cidade. É importante destacar que é o único bairro que ainda se preocupa em desfilar os sambas-reggae no circuito oficial da Micareta. As bandas afros, em sua maioria, são da Rua Nova, e o projeto também vem para alavancar a possibilidade de qualquer fomento na questão cultural e de políticas públicas. Vai facilitar muito para que o recurso chegue até as associações e projetos ligados à cultura”, declarou o vereador ao Acorda Cidade.

O coração negro da Princesa do Sertão, Rua Nova é celebrada como Bem Cultural e Imaterial de Feira de Santana
Foto: Divulgação/Secom/PMFS

Ao reconhecer a Rua Nova como patrimônio imaterial, Feira de Santana não apenas preserva sua memória, mas reafirma que este território é parte fundamental da história e da identidade de sua gente. A Rua Nova carrega em si a fé, a música, a luta e a resistência de gerações que transformaram suas vivências em legado, a expressão viva de uma comunidade que nunca deixou de afirmar seu lugar. Mais do que um bairro, é símbolo vivo da história da cidade e seguirá pulsando, com toda a sua força cultural, social e ancestral, como o coração negro da Princesa do Sertão.

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