Trânsito

Proposta que extingue aulas em autoescolas ameaça à segurança no trânsito, alerta especialista

O argumento de que a medida tornaria o processo mais acessível esconde problemas estruturais que deveriam ser resolvidos pelo próprio Estado.

Congestionamento/ trânsito
Foto: Ed Santos/ Acorda Cidade (Arquivo)

O processo de obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) no Brasil pode passar por uma mudança radical. O governo federal estuda a possibilidade de extinguir a obrigatoriedade das aulas práticas em autoescolas, permitindo que o candidato se prepare por conta própria e realize o exame diretamente no Departamento Estadual de Trânsito (Detran).

A proposta, que tem como justificativa a redução de custos e a ampliação do acesso à habilitação, levanta preocupações entre especialistas em trânsito e profissionais da área.

Para o advogado Geraldo Rafael Rocha Nunes, especialista em Direito de Trânsito, a medida representa um risco grave à formação de novos condutores e, consequentemente, à segurança nas ruas e estradas do país.

Geraldo Rafael Rocha Nunes - especialista em Direito de Trânsito - Foto - Ed Santos
Geraldo Rafael Rocha Nunes, advogado especialista em Direito de Trânsito| Foto: Ed Santos/Acorda Cidade

“Existe uma regulamentação específica pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), e essa resolução estipula que, para a pessoa se tornar capacitada, apta para conduzir veículos automotores nas vias de trânsito, é necessário passar pelos exames práticos, exames teóricos, aulas práticas e aulas teóricas. Então, no meu ponto de vista, entendo que é essencial a existência da autoescola para passar essas instruções para as pessoas que pretendem se tornar habilitadas e peritas para a condução de veículos automotores.”

Segundo o advogado, as autoescolas cumprem um papel essencial, não apenas oferecendo aulas práticas, mas também capacitando tecnicamente o aluno com profissionais habilitados e veículos adaptados para o ensino.

“Entendo que não é viável essa proposta neste momento. Se o objetivo é baixar os custos da CNH, por que não reduzir as taxas cobradas pelo próprio Estado, como os exames médicos, psicológicos e toxicológicos? Por que retirar a autoescola, que é um elo fundamental na formação do motorista. Na autoescola, o aluno está ao lado de um instrutor preparado e credenciado pelo Detran. Os carros são adaptados com pedais duplos, justamente para garantir a segurança em caso de emergência. Aprender a dirigir na rua, com alguém sem capacitação, além de ser infração de trânsito, coloca em risco a vida do aluno e de terceiros”, alertou.

Impactos da proposta

Caso a proposta seja aprovada, Geraldo acredita que o impacto será significativo. Para ele, o argumento de que a medida tornaria o processo mais acessível esconde problemas estruturais que deveriam ser resolvidos pelo próprio Estado.

“O custo da autoescola é alto, varia de R$ 4.500 a R$ 5.000 para as categorias A e B, mas isso também ocorre, porque o Estado impõe uma série de taxas. O correto seria isentar ou subsidiar esses valores, oferecendo exames pelo SUS, por exemplo. O que não se pode fazer é penalizar as autoescolas, que são empresas credenciadas, com estrutura e profissionais preparados para instruir com segurança”, defendeu.

Além disso, o especialista reforçou que a mudança poderá desestimular completamente a busca por formação adequada.

“Se a gente pega uma pessoa que pretende se habilitar e ela fala: ‘ah, hoje é opcional’, você acha que ela vai querer pagar autoescola? Claro que não. Ela vai tentar fazer a prova, se passar, ótimo. Se não passar, continua tentando, sem gastar com formação. E isso pode trazer um risco enorme ao trânsito”, alerta.

Outro ponto levantado pelo especialista é o impacto econômico direto.

“Vai ter um índice de desemprego muito grande. As autoescolas empregam milhares de pessoas, direta e indiretamente. Se essa proposta passar, muitas delas não terão como se manter e terão que fechar as portas.”

Aulas práticas sem estrutura?

A proposta prevê que o candidato possa ser preparado por um condutor habilitado em ambientes privados, como fazendas ou campos. Mas para Geraldo, essa sugestão ignora completamente a realidade do trânsito urbano, como o de Feira de Santana.

“Aprender a dirigir em um campo aberto não é o mesmo que enfrentar o fluxo de um semáforo na cidade. O exame prático é realizado nas vias públicas, com sinalização, tráfego intenso e situações reais. É nesse ambiente que o condutor deve ser treinado, e só um profissional capacitado pode preparar um aluno para isso de forma segura”, explicou.

Fraudes

Além disso, o especialista rebate o argumento de que a mudança ajudaria a combater fraudes.

“As fraudes devem ser investigadas nos próprios órgãos estaduais de trânsito. O problema não está nas autoescolas, especialmente as sérias, que investem em estrutura e seguem todas as normas. O controle deve ser reforçado, não substituído pela informalidade”.

Ao Acorda Cidade, o advogado destacou que o Estado precisa fazer um trabalho mais cuidadoso ao identificar eventuais irregularidades, sem penalizar todo o sistema.

“Nós sabemos que a Bahia é grande, tem muitos órgãos, tem Ciretrans, o próprio Detran com sede em Salvador. E todo lugar que tem, não estou querendo acusar ninguém, nem dizer que realmente há fraude, porque eu não tenho prova disso, mas existem situações que podem acabar prejudicando o cidadão”, ponderou.

O especialista sinalizou que muitas vezes as autoescolas acabam sendo colocadas sob suspeita por conta de ações externas que envolvem outras figuras do sistema de habilitação.

“Às vezes, a autoescola está sendo prejudicada por indícios de fraude que não necessariamente partiram dela. Pode envolver despachantes, ou outras pessoas que atuam no ramo, como no caso recente do cancelamento de todas as vistorias do Detran, que agora foram delegadas a empresas privadas por causa de suspeitas de fraudes na transferência de veículos. E supondo que estejam vendo algo parecido no processo de habilitação, é preciso cautela. Estão entendendo que as fraudes partem das autoescolas, mas isso não é 100% verdade. Quando o cidadão busca uma autoescola séria, com credibilidade, ele paga para se habilitar corretamente, acredito que o serviço será prestado da melhor forma possível”, completou.

Inclusão social e responsabilidade do Estado

Para Geraldo, a CNH é um instrumento de inclusão social, necessário para o trabalho e a mobilidade de milhões de brasileiros. Porém, ele ressaltou que o acesso à habilitação não pode ocorrer de forma irresponsável.

“Hoje, muitos evitam tirar a habilitação por falta de recursos. Mas ao invés de enfrentar esse problema com políticas públicas de incentivo, o Estado prefere uma solução simplista, que pode custar caro em vidas. A alternativa não é acabar com a autoescola, mas sim tornar o processo mais acessível, reduzindo impostos e oferecendo exames gratuitos via SUS”, propõe.

Riscos de dirigir sem habilitação

O especialista alerta ainda que dirigir sem CNH é uma infração gravíssima. Se flagrado, o condutor recebe multa de R$ 880,41, além de ter o veículo apreendido.

“O cidadão que opta por não tirar a habilitação por falta de condições financeiras muitas vezes se arrisca nas ruas, fugindo de blitz como se fosse criminoso. Não é justo. É uma falha do sistema que empurra o cidadão para a ilegalidade”, lamentou.

Além disso, Geraldo destacou que problema está no peso financeiro que o Estado transfere ao cidadão. “O Estado cobra taxas absurdas, laudos e exames com preços altos e ainda exige que as autoescolas paguem tributos altíssimos. Por que o Estado não tira do dele? Está querendo tirar da autoescola por quê? Porque só pensa no próprio bolso, no erário público.”

Leia também: Governo avalia cortar aulas práticas obrigatórias em autoescolas para obter CNH; Detrans são contra

Com informações do repórter Ed Santos do Acorda Cidade

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