Neste 2 de Julho, para celebrar 202 anos de liberdade, as ruas da Bahia se enchem de cores, tambores e passos firmes que ecoam o grito de um povo que não aceitou uma independência assinada com penas de nobreza, mas conquistada com ferro, suor, sangue e pólvora. A data, considerada por muitos historiadores como a verdadeira independência do Brasil, marca a expulsão definitiva das tropas portuguesas do território baiano, em 1823 – quase um ano após o famoso 7 de setembro de 1822, com a Proclamação da República.
A frase “Independência do Brasil na Bahia”, celebrada no bicentenário, reforça que, por aqui, a liberdade não veio com um decreto, mas com muita luta. Enquanto outras províncias já proclamavam a independência no papel, a Bahia seguia sob domínio português e enfrentava combates até 2 de julho de 1823 para, enfim, romper de vez com a opressão colonial.
O que torna esse marco tão simbólico para o estado é justamente o caráter coletivo e combativo da luta. Ao Acorda Cidade, a professora Lina Maria Brandão de Aras, doutora em História pela USP e professora titular do Programa de Pós-Graduação em História, destacou a importância da resistência popular.
“A historiografia baiana cuidou para que a data fosse reconhecida como a luta pela expulsão dos portugueses da Bahia, com uma guerra que marca fissuras nas relações Portugal–Brasil, executada pelo ‘povo’.”
Enquanto províncias como São Paulo e Rio de Janeiro optaram por um caminho mais diplomático e elitizado, os baianos tiveram que seguir com uma batalha direta. De acordo com a professora, a guerra na Bahia foi intensa, organizada e estratégica, marcada pela criação de um Governo Provisório ainda em 1822, que mobilizou várias regiões do estado, principalmente as cidades do recôncavo baiano como Cachoeira, Santo Amaro, São Francisco do Conde, Maragogipe, Nazaré das Farinhas, Jaguaripe, mas também Feira de Santana, muito antes de se tornar vila.
“Acredito que essa mobilização pode ter amalgamado a força que teve a guerra, numa luta entre o Exército Português e as forças em armas. Em relação ao aspecto bélico, os baianos estavam em desvantagem, mas escaramuças e emboscadas em terra e água contribuíram para o cerco da fome que teve o sucesso desejado.”
Esse “cerco da fome”, como ficou conhecido, foi o combustível para impedir o abastecimento das tropas portuguesas, o que ajudou a garantir a vitória final. A independência baiana não foi obra apenas de generais ou líderes militares: ela foi construída e arquitetada pelo povo.
“O povo representado por homens livres pobres, libertos, indígenas e mulheres. Cada um e uma exercendo uma função dentro das forças em armas. As elites representadas pelo oficialato, liderando o processo, mas que sem o povo não teria chegado a vitória e, muito menos, adentrado a Estrada da Liberdade”, afirmou Aras ao Acorda Cidade.
Entre esses protagonistas, os povos afrodescendentes e indígenas tiveram papel crucial, tanto na linha de frente das batalhas quanto nas redes de apoio e estratégias de resistência. Negros libertos e escravizados, indígenas aldeados e de diferentes etnias estiveram entre os que empunharam armas, prepararam alimentos, defenderam as ilhas da Baía de Todos-os-Santos e criaram essas táticas de combate e sobrevivência.
A luta afroindígena não só moldou o desfecho da guerra, mas também revelou uma força coletiva que ultrapassava as hierarquias coloniais e afirmava outros modos de existência e liberdade.
Maria Felipa, por exemplo, mulher negra e marisqueira da Ilha de Itaparica, se tornou símbolo da resistência afro-brasileira, ao liderar mulheres na defesa de seu território. Os povos indígenas também foram essenciais no domínio das trilhas e emboscadas, usando seu conhecimento ancestral do território como arma de guerra. Suas presenças reafirmam que a independência não se forjou apenas com batalhas oficiais, mas com a força de saberes e corpos historicamente invisibilizados.
Lira Aras ainda destacou que, embora a história tenha sido escrita majoritariamente pelos vencedores da elite, o século XX trouxe à luz personagens fundamentais para esse processo. Aos poucos, o protagonismo popular vem sendo resgatado pelas pesquisas e agendas políticas como as do movimento negro.
“Temos várias personagens biografadas e outras que precisam de estudos. Além da tríade feminina – Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica – temos o soldado Tambor (evidenciado na pintura de Parreira), o corneteiro Lopes que, por muito tempo, esteve sozinho para aquele responsável pela batalha final; o soldado Jacaré e as populações ribeirinhas que guarneceram as ilhas da Baía de Todos os Santos já aparece nas pesquisas em desenvolvimento, as mulheres do mingau, os indígenas (Cancela, 2022). São muitos, precisamos valorizar cada um e cada uma que esteve no campo de batalha lutando para romper os laços com o Estado português e buscar o seu lugar na sociedade, afinal, ‘Nasce o sol no 2 de julho’”.
Mas por que demorou tanto para o 2 de Julho ser reconhecido em nível nacional?
Segundo a professora, a resposta está na própria construção do Brasil enquanto Estado-nação, centralizado no poder político do centro-sul do país. É aquela velha dificuldade de reconhecer a sua própria história para não dar nome aos verdadeiros campeões.
“A formação da Nação precisa de elementos que possam amalgamar o sentimento de pertença. O Brasil se tornou um Estado a partir de uma independência realizada pelas elites do centro-sul que acreditava que a simbologia única, criada e hegemonizada por todo o território, faria com que ocorresse a unidade nacional, coisa que não aconteceria se a Corte não se utilizasse dos poderes regionais (através da chamada ajuda mútua) para conter a efervescência política pelas armas no processo de construção do Estado-Nação.”
Neste 2 de Julho, mais do que lembrar um feito histórico, é dia de reafirmar lutas ainda inacabadas. A própria abolição da escravatura, que só ocorreu mais de 60 anos depois, em 1888, não representou a liberdade real para a população negra. Sem acesso a direitos básicos, terra, trabalho ou reparação, homens e mulheres negros foram jogados à margem da sociedade, excluídos do projeto de nação que ajudaram a construir com seu sangue e sua resistência. (Saiba mais aqui)
“A independência não está concluída, pois precisamos da cidadania para o povo brasileiro, condição que estava implícita nas lutas pela independência e que foram usurpadas pelos vencedores”, afirmou a professora.
Ela também complementou com um chamado ao compromisso com a memória do povo brasileiro e a justiça histórica que está em curso. “Precisamos de financiamento das pesquisas, pois este ainda é um tema em aberto, especialmente no sentido de incluir as diferentes regiões da Bahia.”
Enquanto o cortejo do Caboclo e da Cabocla percorre Salvador com seus símbolos ancestrais, o 2 de julho renasce a cada ano para reafirmar que a Bahia não pediu licença para ser livre. Lutou. Resistiu. Venceu. E segue iluminando o Brasil com a chama da sua independência.
Com informações da jornalista e produtora do Acorda Cidade Iasmim Santos
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