Saúde
Residências Terapêuticas de cidades da Bahia recebem pacientes de Feira de Santana
O processo de desinstitucionalização desses indivíduos, ou seja, a retirada de uma pessoa da condição permanente de interno em uma instituição é fruto do esforço dos profissionais de diferentes áreas
01/10/2014 às 11h19, Por Kaio Vinícius
Acorda Cidade
Sem vínculo familiar há 16 anos, desde 1998, quando foi internado na maior unidade de tratamento de pessoas com transtornos mentais da Bahia, o Hospital Especializado Lopes Rodrigues (HELR), em Feira de Santana, Antônio Souza, 48 anos, deu os primeiros passos de uma nova vida fora dos muros manicomiais nesta sexta-feira, 19 de setembro. Um dia marcante, para ser lembrado como mais uma etapa bem planejada e concluída com êxito da Reforma Psiquiátrica no Estado, quando oito moradores do hospital psiquiátrico (Antônio Souza, Maria do Carmo, Osvaldo Veloso, Marquinhos, Paulinho, Cecília, José Arnaldo e Tonho) foram morar, em definitivo, em uma Residência Terapêutica no município de Euclides da Cunha, a 311 quilômetros de Salvador. Após esta terceira etapa de reintegração, ainda restam 145 moradores no HELR.
Natural do município, localizado na região nordeste do Estado, Tonho como é mais conhecido, migrou para São Paulo ainda jovem para buscar trabalho no Sudeste do país. Sem sucesso, ele voltou à Bahia e chegou a viver em situação de rua em Salvador quando foi internado por apresentar transtornos psíquicos, no Hospital Juliano Moreira e posteriormente foi transferido para o HELR, perdendo todo o contato com o mundo fora da instituição.
“Fiquei jogado na rua, sem parente, sem nada. Depois passei todo esse tempo dentro de um hospício, mas agora estou em casa, muito satisfeito. E um dia vou procurar minha família que mora aqui perto”, relatou Antônio, que sempre foi de poucas palavras, mas hoje apresenta autonomia compatível com a vida em liberdade. Ainda no Lar Abrigado, um espaço de convivência, sem leitos hospitalares, que prepara os moradores para o convívio nas residências terapêuticas, Antônio conheceu Maria do Carmo, sua companheira para essa nova jornada.
Reintegração social
O processo de desinstitucionalização desses indivíduos, ou seja, a retirada de uma pessoa da condição permanente de interno em uma instituição é fruto do esforço dos profissionais de diferentes áreas da “Equipe Desinsti” do HELR, da Área Técnica de Saúde Mental, da Diretoria de Gestão do Cuidado, da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), através do diálogo com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a pactuação junto aos municípios baianos para a implantação dos Serviços de Residência Terapêutica (SRT), instituídos pelo Ministério da Saúde como parte da Política de Saúde Mental, para funcionar como moradias dentro da cidade para a reinserção social de pessoas com transtornos mentais, com histórico de internação prolongada e perderam todo o contato com a família e a sociedade.
“Esse é um procedimento ímpar, onde todos os servidores estão envolvidos. É um trabalho árduo. O primeiro passo é que o morador precisa querer sair da instituição, depois ele é preparado para a reinserção à sociedade, pois alguns passaram a maior parte da vida enclausurados, privados de liberdade e perderam o referencial do que o mundo fora daqui”, explicou a diretora do HELR, Iraci Leite.
A diretora de Gestão do Cuidado da Sesab, Liliane Mascarenhas destaca a importância deste momento para o movimento antimanicomial na Bahia. “Esta é uma ação histórica para a saúde mental, que só está sendo possível por meio do trabalho em conjunto, de uma equipe comprometida com a devolução da dignidade a essas pessoas”, afirmou.
De acordo com a coordenadora de Psicologia do hospital, Tahiri Nicoletti, a sensibilização dos municípios do interior nos quais algum morador nasceu é o primeiro passo. Após essa fase, vem a estimulação da autonomia dos usuários e a apresentação da nova casa.
Acolhimento
Em Euclides da Cunha, os novos moradores foram muito bem recebidos, pela prefeita Fátima Nunes Soares, a secretária de Saúde municipal, Luciana D’ Lima França, autoridades municipais, representantes do CAPS, que atuarão como referência, dando suporte e acompanhamento constante aos moradores da RT e pelos cuidadores que ficarão à disposição deles.
“A secretária de Saúde nos trouxe a proposta, com o diferencial de que um ex-morador da cidade estava entre os que seriam acolhidos e nós abraçamos a ideia com o objetivo de melhorar a vida dessas pessoas, que agora são cidadãos de Euclides da Cunha”, disse a prefeita Fátima Soares.
Na última quarta-feira, 17 de setembro, outros seis moradores (Teodora, Ângela, Lauro, Roque, José e Laureano) foram para a Residência Terapêutica no município de Araci, a 211 quilômetros de Salvador. Entre eles, encontramos histórias como a de Lauro Magalhães, 71 anos, que viveu metade da vida internado e nunca foi alfabetizado. Ele chegou ao HELR em 1977, há 37 anos, vindo do Juliano Moreira, sem referência familiar. Em todo esse tempo nunca recebeu uma visita.
Os primeiros seis primeiros ex-moradores do hospital foram para o município de Coração de Maria no dia 28 de agosto. Na ocasião, os gestores e profissionais do CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – os acolherem de forma calorosa.
Proteção aos portadores de transtornos mentais
Por terem sido excluídos da sociedade e lesados no seu exercício de cidadania, os moradores dos hospitais psiquiátricos, garantiram desde 2001, com a sanção da Lei 10.216 e o redirecionamento do modelo de assistência à saúde mental, o direito à moradia e benefício, pagos pelo Ministério da Saúde, como uma forma indenizatória. Com isso, as Residências Terapêuticas são mantidas com recursos financeiros anteriormente destinados aos leitos psiquiátricos.
Para o psicólogo do HELR, Filipe Rodrigues, o processo de reintegração dos ex-pacientes à sociedade é, de fato, indenizatório. “Estamos tentando pagar uma dívida com essas pessoas, que passaram tanto tempo segregados do mundo”, resumiu Rodrigues.
A perda, seja de um emprego, um amor e, consequentemente, da auto-estima é dos principais fatores que contribuem para afetar a saúde mental dos indivíduos. Na Bahia, a Reforma Psiquiátrica começa a aparecer de forma mais concreta esse ano, com a expansão da Rede de Atenção Psicossocial, que prevê o cuidado em liberdade para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, e a desinstitucionalização nos hospitais psiquiátricos ganhando celeridade.
“Na residência terapêutica é possível torná-las pessoas capazes, pois eles são estigmatizados como incapazes. Tudo o que o paciente perde durante o internamento, na residência eles passam a retomar, como pessoas comuns, voltando a frequentar os espaços comunitários”, disse Lívia Souza, representante da AMEA – Associação Metamorfose Ambulante dos Usuários e Familiares da Saúde Mental da Bahia, atuou como cuidadora por três nos em uma RT de Salvador.
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