Por Vladimir Aras
Os casos concretos nos trazem dificuldades prosaicas. Um Secretário de Estado teria descumprido uma ordem judicial. Com isto cometeu crime de desobediência (art. 330 do CP).
O desobediente estará sujeito à dissuasiva (sic) pena de 15 dias a 6 meses de detenção. No Brasil, descumprir uma decisão judicial é uma infração penal de menor potencial ofensivo. É quase nada. Por isso ninguém “morre de medo” e os descumprimentos a ordens judiciais se sucedem. Só esta semana despachei dois.
Tudo isto fere a autoridade do Judiciário e desmerece sua função precípua, que é a de impor o Estado de Direito (rule of law), como o último bastião dos direitos individuais e coletivos. A desobediência às decisões dos juízes gera descrédito e desânimo, dificulta o trabalho dos advogados e frustra os cidadãos. Pegaremos em armas? Faremos “justiça” com as próprias mãos? Recorreremos ao bispo? Se quiser, vá aqui.
Mas não é disto que quero tratar. A questão deste post é bem mais simples: a quem compete investigar e julgar os secretários de Estado em suas peripécias e traquinagens?
No campo da improbidade administrativa, matéria regulada pela Lei 8.429/92, para mim não há dúvida. Apesar da tese de que os agentes políticos não se sujeitam à Lei de Improbidade Administrativa, esta posição do STF é restrita a certas autoridades, como o presidente da República e seus ministros, pois estes estão sujeitos ao processo de impeachment, de acordo com a Lei 1.079/50, que regula o processo dos impropriamente chamados “crimes de responsabilidade”, na verdade infrações político-administrativas.
Esta solução não se estende, porém, aos prefeitos municipais ou aos secretários estaduais, como se depreende da Reclamação 2138/DF, rel. orig. Min. Nelson Jobim, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 13.6.2007, e da Pet 3923 QO/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, 13.6.2007.
Assim, creio ser correto afirmar que os secretários estaduais estão sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa.
Porém, não é certo que em tais ações de improbidade os secretários de Estado respondam em primeiro grau, uma vez que há no STJ precedentes em sentido contrário:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGENTES POLÍTICOS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL. SECRETÁRIOS DE ESTADO. COMPETÊNCIA. PRERROGATIVA DE FORO. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. COMPETÊNCIAS IMPLÍCITAS COMPLEMENTARES. REMESSA AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL.
1. Trata-se de Ação Civil Pública contra os recorridos em razão da prática de atos de improbidade administrativa, descritos como dispensa indevida de licitação, desvio de verbas públicas, autorização de despesas não previstas em lei e desvio de finalidade na implementação do ‘Programa do Leite’, com prejuízo aos cofres públicos no valor de aproximadamente R$ 10 milhões.
2. Após sentença de procedência, o acórdão acolheu a alegação de inaplicabilidade de Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos e, em relação aos demais, anulou a sentença por cerceamento de defesa. O Recurso Especial pugna pela reforma do acórdão nesses dois pontos.
3. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela submissão dos agentes políticos à Lei de Improbidade Administrativa (Rcl 2.790/SC, Corte Especial, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 4.3.2010).
4. Todavia, o mesmo precedente estabelece privilégio de foro aos agentes políticos em ações de improbidade – com base em construção amparada em julgado do STF -, na relevância do cargo de determinados sujeitos, no interesse público ao seu bom e independente exercício e na idéia de competências implícitas complementares.
5. A Constituição do Estado do Rio Grande do Norte prevê prerrogativa de Foro a Secretários de Estado.
6. Recurso Especial parcialmente provido para reconhecer a aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa aos recorridos, agentes políticos, com remessa, de ofício, dos autos ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte para que julgue a demanda em competência originária. (STJ, REsp 1.235.952-RN, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, 02.06.2011, v.u.).
Tenho minhas dúvidas sobre o acerto de tal solução. Nos feitos cíveis — e a ação de improbidade tem esta natureza – não há foros privilegiados. O princípio da igualdade processual aqui é presente. Já deixamos há muito de lidar com juízos excepcionais, como aquele que beneficiava os cidadãos britânicos, durante a era colonial e os primeiros anos do Império do Brazil. Não há mais o “juiz conservador da Nação Britânica”, que protegia os súditos de Albion da Justiça tupiniquim.
No campo criminal, contudo, a história é outra. Aqui sim vale, sem dúvida, o privilégio de foro para esta e outas autoridades. Já adianto que sou contrário ao foro especial como hoje o temos, tão extenso. Mas não se pode negar a realidade.
A Constituição do Estado da Bahia (art. 123, inciso I, letra ‘a’) dá aos Secretários de Estado prerrogativa de serem processados e julgados criminalmente perante o Tribunal de Justiça:
Art. 123 – Compete ao Tribunal de Justiça, além das atribuições previstas nesta Constituição:
I – processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, o vice-governador, secretários de Estado, deputados estaduais, juizes do Tribunal de Alçada(*), membros do Conselho da Justiça Militar, auditor militar, inclusive os inativos, procurador geral do Estado, defensor-chefe da Defensoria Pública, juizes de Direito, membros do Ministério Público e prefeitos;
Várias Constituições dos Estados brasileiros têm disposições da mesma ordem: os secretários de Estado têm foro especial nos tribunais de Justiça. São exemplos as Cartas de Alagoas (art. 114, único), Amazonas (art. 72, inciso I, ‘a’), Espírito Santo (art. 109, inciso I, ‘a’), Minas Gerais (art. 103, inciso I, ‘b’), Pará (art. 142); Paraná (art. 92), Rio Grande do Norte (art. 71, inciso I, ‘c’), Rio Grande do Sul (art. 95, inciso XI), Rio de Janeiro (arts. 150 e 161, IV, alínea ‘d’), Rondônia (art. 87, inciso IV, alínea ‘b’), Santa Catarina (art. 75) São Paulo (art. 74, inciso I), Sergipe (art. 91). A Lei Orgânica do Distrito Federal contém a mesma previsão (art. 107).
Não vi as Constituições faltantes, mas suponho que a história se repita em todos os Estados Unidos do Brazil. Afinal, quem não gosta de um privilégio?
Portanto, pode-se afirmar que, nas infrações penais de competência da Justiça estadual, caberá aos Tribunais de Justiça julgar os secretários de Estado. A atribuição para a ação penal é das Procuradorias-Gerais de Justiça, órgãos que encabeçam o Ministério Público nos Estados federados.
Não há regra semelhante na Constituição Federal. Porém, por simetria, é dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), a competência para julgar os Secretários de Estado nos crimes federais (só nos crimes!), e, consequentemente, é dos procuradores Regionais da República, órgãos de segundo grau do MPF, a atribuição para a ação penal.
O TRF da 1ª Região assim tem decidido:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. COMPETÊNCIA FEDERAL. SECRETÁRIO DE ESTADO. PRERROGATIVA DA FUNÇÃO. JUÍZO NATURAL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 1. Na existência de crime federal praticado por agente público estadual que ostenta, pela prerrogativa da função, o foro junto ao Tribunal de Justiça do Estado, pelo princípio da simetria, mantém-se a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da ação, deslocando-se o foro para o Tribunal Regional Federal. Precedentes desta Corte. 2. “A competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo Tribunal de segundo grau” (Súmula nº 702 do STF). 3. Agravo regimental não provido. (TRF-1, 2ª Seção, AGIP 200601000263828, REL. JUIZ FEDERAL JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA, DJ DATA:27/10/2006).
Eis a posição do STJ:
HABEAS CORPUS. SECRETÁRIO DE ESTADO. COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. CRIME DA ALÇADA DA JUSTIÇA FEDERAL. JULGAMENTO PELO TRIBUNAL FEDERAL COM JURISDIÇÃO SOBRE A UNIDADE DA FEDERAÇÃO ONDE O CARGO COM PRERROGATIVA DE FORO É EXERCIDO. ORDEM CONCEDIDA. 1 – Tendo em vista que o foro por prerrogativa de função visa a proteger o cargo e não seu ocupante eventual, aquele sim a ser amparado pela garantia legal, e tratando-se de delitos da alçada da Justiça Federal, a competência é do Tribunal Federal com jurisdição sobre a unidade da Federação onde o cargo com prerrogativa de foro é exercido. 2 – O Secretário de Estado em Pernambuco, que praticou crime no Distrito Federal em detrimento de bens ou interesse da União, deve ser processado e julgado pelo Tribunal Federal da 5ª Região. 3 – Habeas corpus concedido. (STJ, 6ª Turma, HC 200701537761, PAULO GALLOTTI, DJ 19/11/2007).
Assim, não é da primeira instância a atribuição criminal para conduzir investigações penais contra secretários de Estado, ainda que se trate de infrações penais de menor potencial ofensivo (IPMPO), isto é, as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 2 anos de prisão.
Vale dizer: se o suspeito for um secretário de Estado, nas IPMPO, definidas no art. 61 da Lei 9.099/95, a competência não será do Juizado Especial Criminal, mas dos tribunais de Justiça e dos tribunais regionais federais, respeitada a ressalva constitucional quanto às contravenções penais (art. 109, IV, CF).
Resumindo o foro especial dos secretários de Estado:
a) se o fato for de competência da Justiça Estadual (infração penal comum), o juiz natural será o Tribunal de Justiça da unidade federada, observados a Constituição Estadual e o Regimento Interno da corte de segundo grau;
b) se o fato for de competência federal (crime comum), o juiz natural será um dos cinco Tribunais Regionais Federais, mais especificamente aquele com jurisdição sobre o Estado de origem da autoridade, ressalvadas as contravenções penais;
c) nos crimes eleitorais, os secretários de Estado têm foro especial nos Tribunais Regionais Eleitorais, por simetria.
d) se a infração penal comum for cometida em concurso com governador de Estado, a competência será do STJ, à luz do art. 105 da CF;
e) já nos crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) cometidos em concurso com os governadores de Estado, os secretários estaduais são julgados pela Assembleia Legislativa. Se agem sozinhos, também são julgados nos tribunais de Justiça.
Em suma, no que nos interessa (o juízo criminal), cabe afirmar que os secretários de Estado têm foro especial por prerrogativa de função no TJ nas infrações penais comuns (crimes e contravenções). Quanto ao crimes federais, seu foro é no TRF.
Em consequência, o processo criminal contra tais autoridades terá curso de acordo com o procedimento especial das ações penais originárias, previsto na Lei 8.038/90, combinado com o regimento interno de cada tribunal.
Qualquer que seja a corte ou a autoridade privilegiada com o foro especial, é essencial observar uma alteração relevante, cujo precedente é a AP 528 (rel. min. Ricardo Lewandowski, 2011): o interrogatório será sempre o último ato da instrução criminal, a despeito do que diz o art. 7º da Lei 8.038/90. Tratei disto neste post (“Do começo para o fim“).
Então, o caso concreto não era meu. Fui obrigado pela lei a declinar da honra de processar S. Exa. Despachei para subir.