Cooperação internacional

Videoconferência criminal transnacional

No seu recurso especial, o MPF pretendia restabelecer a pena de 4 anos e 4 meses de detenção aplicada aos réus em primeira instância.

18/08/2014 às 10h48, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

Todos viram que a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou esta semana (ago/2014) os recursos especiais do MPF e da defesa no caso Legacy, de 2006. O resultado não chegou perto de ser bom.

No seu recurso especial, o MPF pretendia restabelecer a pena de 4 anos e 4 meses de detenção aplicada aos réus em primeira instância. Os pilotos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino mataram todos os 154 ocupantes do voo Gol 1907, e é isto o que o STJ oferece como resposta ao País e às vítimas: pena de 3 anos, 1 mês e 10 dias de detenção, em regime aberto. A prisão preventiva de ambos, para fins extradicionais, foi negada. Ainda cabe recurso. Espere-se o trânsito em julgado. Quantos anos mais?

Tomo este trágico evento humano, com sua ridícula consequência jurídica, como mote para falar de outra coisa, a videoconferência, uma vez que, entre idas e vindas processuais, esse instrumento tecnológico foi empregado na instrução da ação penal do caso Legacy. Mas não foi fácil

Vantagens da videoconferência

Entende-se por videoconferência o sistema interativo de comunicação à distância que permite a transmissão instantânea (“ao vivo”) de imagem, som e dados entre localidades distintas, de forma bidirecional. Trata-se de ferramenta importante na instrução processual tradicional e também na cooperação internacional em matéria penal.

Suas utilidades passam pela viabilização, a baixo custo, de reuniões de coordenação entre autoridades encarregadas da persecução penal e se espraiam até a coleta probatória, seja na investigação criminal ou na etapa contraditória, servindo ainda para o reconhecimento de pessoas e coisas à distância.

Aspectos técnicos podem dificultar a conexão entre os distintos países. Todavia, as áreas de tecnologia dos órgãos brasileiros de persecução criminal têm sido capazes de solucionar dificuldades de conexão, mediante o uso das redes digitais das próprias instituições, ou com o emprego de serviços especializados (conferencing services), que são remunerados de forma autônoma.

Para a produção probatória, a videoconferência pode ser usada tanto na fase da investigação, quanto na fase judicial, para oitiva de vítimas, testemunhas, peritos, colaboradores, informantes e do investigado ou acusado. Assim, sua utilidade se apresenta no inquérito policial, no procedimento investigatório criminal ou na ação penal.

Quando se tem em mira a tomada de depoimentos no exterior, as opções que se colocam ao Ministério Público ou à Polícia são:

a) a realização de missão no estrangeiro para oitiva do depoimento, com os custos inerentes, isto é, transporte aéreo e diárias;
b) a transferência voluntária da pessoa para prestar depoimento no Brasil, o que pode ser inviável devido à voluntariedade da medida e aos custos de transporte e hospedagem do depoente;
c) a remessa de uma carta rogatória (mutual legal assistance request) ativa ao país estrangeiro para a oitiva da pessoa, a partir de uma lista de perguntas previamente traduzidas, o que pode burocratizar a coleta da prova ou tatrasá-la; ou
d) o teledepoimento ou teleinterrogatório (videonconferência).
As vantagens deste último método estão na redução de custos da diligência, isto é, na economia de verbas públicas do Poder Executivo, do Ministério Público e do Poder Judiciário, além da densificação dos princípios do juiz natural, do promotor natural, da oralidade, da imediatidade, da identidade física do juiz, do contraditório (no sentido do diálogo ou confronto processual durante o “cross-examination”) e da celeridade.

Legalidade e a regra lex loci

No plano da legalidade, não há óbice algum para execução de uma teleaudiência transnacional. A legislação processual penal brasileira admite o teleinterrogatório e o teledepoimento, desde a vigência da Lei 11.690/2008 e da Lei 11.900/2009. Assim, esta ferramenta aplica-se ao interrogatório do réu e aos depoimentos de vítimas e testemunhas nas ações penais brasileiras. Por extensão, também pode ser utilizada para oitiva de peritos, colaboradores e informantes nos mesmos feitos, estando superado o entendimento do STF, no HC 88.914/SP, que considera inválido a adoção desse meio tecnológico.

AÇÃO PENAL. Ato processual. Interrogatório. Realização mediante videoconferência. Inadmissibilidade. Forma singular não prevista no ordenamento jurídico. Ofensa a cláusulas do justo processo da lei (due process of law). Limitação ao exercício da ampla defesa, compreendidas a autodefesa e a defesa técnica. Insulto às regras ordinárias do local de realização dos atos processuais penais e às garantias constitucionais da igualdade e da publicidade. Falta, ademais, de citação do réu preso, apenas instado a comparecer à sala da cadeia pública, no dia do interrogatório. Forma do ato determinada sem motivação alguma. Nulidade processual caracterizada. HC concedido para renovação do processo desde o interrogatório, inclusive. Inteligência dos arts. 5º, LIV, LV, LVII, XXXVII e LIII, da CF, e 792, caput e § 2º, 403, 2ª parte, 185, caput e § 2º, 192, § único, 193, 188, todos do CPP. Enquanto modalidade de ato processual não prevista no ordenamento jurídico vigente, é absolutamente nulo o interrogatório penal realizado mediante videoconferência, sobretudo quando tal forma é determinada sem motivação alguma, nem citação do réu. (STF, 2ª Turma, HC 88914, Relator Min. CEZAR PELUSO, julgado em 14/08/2007).

Se um determinado procedimento está disponível no plano interno, como está no Brasil, também estará no plano cooperativo transnacional, por simetria e por força do princípio segundo o qual é a lex loci que deve reger a execução de pedidos de cooperação internacional passiva.

Quanto aos pedidos ativos, a ideia é semelhante. Se os teledepoimentos e teleinterrogatórios são conhecidos pela lei brasileira, podemos pedi-los a outros países. Em outros termos, os órgãos judiciais e de persecução nacionais podem rogar aos seus congêneres estrangeiros que adotem tal procedimento na coleta probatória, desde que tal forma esteja prevista na lei local (no exterior).

Neste particular, é importante lembrar que o parágrafo único do art. 222-A do CPP também permite a utilização da videoconferência como forma de cumprimento de diligências solicitadas em cartas rogatórias. A falta de referência ao §3º do artigo 222 do CPP não é óbice algum, pois diante do princípio territorial (lex loci) a providência é absolutamente válida nos processos penais brasileiros. Ademais, a omissão do legislador é evidente, já que o método é mais eficiente e célere que a tradicional rogatória, acompanhada de lista de perguntas.

Por outro lado, alguns tratados firmados pelo Estado brasileiro expressamente preveem o uso de videoconferência na cooperação internacional. Este é o caso do Tratado de Cooperação Jurídica em Matéria Penal entre a República Federativa do Brasil e a Confederação Suíça, de 2004 (Decreto 6.974/2009), cujo artigo 21 autoriza a audiência por videoconferência entre os dois países.

Exemplificativamente, há dispositivos semelhantes noutros dois tratados:

Tratado de Assistência Jurídica Mútua em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, firmado em Londres, em 7 de abril de 2005 (Decreto 8.047/2013), especificamente o artigo 1º, §5º, letra ‘a’.
Tratado de Cooperação Jurídica Interrnacional em Matéria Penal entre a República Federativa do Brasil e os Estados Unidos Mexicanos, firmado na Cidade do México, em 6 de agosto de 2007 (Decreto 7.595/2011), especificamente seu artigo 20.
Observe-se, porém, que o Mutual Legal Assistance Treaty (MLAT) franco-brasileiro (Decreto 3324/1999) — conhecido como Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Francesa, celebrado em Paris, em 28 de maio de 1996 –, não contém qualquer regra específica sobre videoconferência. No entanto, em 2012, a França rogou e o Brasil executou uma comissão rogatória para oitiva de testemunhas fundamentais num julgamento do júri, realizado na cidade francesa de Grenoble. O pedido estrangeiro tramitou pela autoridade central brasileira e foi executado pelo MPF, em Salvador. Os depoentes foram notificados pela Procuradoria da República, compareceram à sede do MPF e seus depoimentos foram colhidos sob a presidência da corte francesa, por videoconferência, na presença das partes.

Aquela diligência foi possível porque a videoconferência está prevista na lei brasileira para situações semelhantes. Some-se a isto o princípio pro solicitudine, que reclama que nos pedidos de cooperação seja sempre adotada a solução mais favorável à comissão rogatória, entre as possíveis. Ademais, o artigo 3º do acordo bilateral franco-brasileiro tem cláusula de abertura, que revela que as providências na cooperação judiciária entre as duas nações sempre são possíveis desde que os procedimentos estejam previstos na legislação local (lex loci) para os processos domésticos, não sendo necessária a previsão expressa nos tratados.

Operação Zero Absoluto

Nas ações penais da Operação Zero Absoluto, a videoconferência também foi útil. A pedido do Ministério Público Federal no Paraná, a Justiça Federal brasileira colheu o depoimento da ré colaboradora Maria Carolina Nolasco, que foi arrolada como testemunha em ações penais brasileiras, num esquema de evasão de divisas e lavagem e dinheiro conhecido como caso “Merchants Bank”.

Foi a primeira vez que a Justiça brasileira realizou uma videoconferência transnacional. O ato foi presidido pelo juiz federal Sergio Fernando Moro, em Curitiba, com a presença da defesa e de representantes do Ministério Público Federal, inclusive este blogueiro. A testemunha esteve presente na sede do Departamento de Justiça dos Estados Unidos em Newark, Nova Jersey.

Embora a diligência tenha atendido todas as formalidades do devido processo legal, um dos acusados impetrou habeas corpus perante o TRF da 4ª Região e conseguiu anular o ato, sob a alegação de cerceamento de defesa.

O caso Legacy

Um dos mais conhecidos usos da videoconferência transacional se deu no caso Legacy. Em 2006, um jato construído pela Embraer, que cumpria a etapa Brasília–Manaus, chocou-se em pleno ar com o voo 1907 da Gol, que partira de Manaus rumo a Brasília. Todos os 154 ocupantes do Boeing morreram. O Legacy era pilotado pelos americanos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino que tiveram seus passaportes restituídos e foram para os Estados Unidos, com a promessa de voltar. Nunca retornaram.

Inicialmente, o juiz federal de Sinop/MT insistiu na presença dos acusados em território brasileiro para serem interrogados. A esta medida de cooperação internacional dá-se o nome de “transferência de pessoas”. Sua natureza voluntária impede que o réu ou a testemunha seja compelida a comparecer pessoalmente ao país de origem, o que fez com a Justiça brasileira descartasse tal opção. É que, conforme o artigo 10 do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América (Decreto 3.810/2001), o depoimento no Estado requerente depende da concordância do depoente e da expedição de salvo-conduto.

A alternativa óbvia seria a realização de videoconferência. No entanto, em 2007, a autoridade judiciária brasileira indeferiu pedido da defesa para isto (aqui). Posteriormente, já em março de 2008, o juízo optou pela preparação de lista escrita de perguntas a serem feitas nos Estados Unidos, em cumprimento a uma carta rogatória ativa. Essa decisão foi motivada pela posição do STF no HC 91.444/SP, que permitiu a dois outros réus serem interrogados nos Estados Unidos:

Habeas corpus. Processual penal. Internacional. Interrogatório dos pacientes. Cidadãos norte-americanos. Ato essencialmente de defesa. Possibilidade de ser praticado perante as autoridades judiciárias estrangeiras, por força do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, assinado entre o Brasil e os EUA. Decreto nº 3.810/01. 1. O Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, assinado pelo Brasil e pelos Estados Unidos, tem como objetivo “facilitar a execução das tarefas das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei de ambos os países, na investigação, inquérito, ação penal e prevenção do crime por meio de cooperação e assistência judiciária mútua em matéria penal”. 2. O artigo I, item 2, letra “a”, desse acordo prevê que a assistência incluirá, entre outros atos processuais, a tomada de depoimento ou declaração de pessoas, incluindo-se aí o interrogatório dos acusados. 3. Considerando as peculiaridades do caso concreto e o que previsto no Acordo de Assistência, em especial no artigo V, item 3, o interrogatório dos pacientes poderá ocorrer perante as autoridades e sob as regras processuais dos Estados Unidos. 4. O artigo X, item 1, do mesmo diploma estabelece que, quando o Estado requerente solicita o comparecimento de uma pessoa para prestar depoimento, o Estado requerido “convidará” essa pessoa para que compareça perante a autoridade competente no Estado requerente, devendo este aguardar a resposta do depoente. Esse dispositivo indica a não-obrigatoriedade do comparecimento pessoal do depoente que poderá responder, por escrito, aos quesitos formulados pela Justiça brasileira. 5. Ordem concedida. (STF, 1ª Turma, HC 91444, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO, julgado em 04/03/2008).

Felizmente, essa opção, mais burocrática, foi descartada pelo Juízo Federal de Sinop, que acabou ordenando o interrogatório dos dois pilotos por videoconferência, numa conexão entre Brasília e Nova York. A sala para a teleaudiência foi montada na sede do DRCI, e o interrogatório na ação penal 2007.36.03.002400-5 foi concluído por videoconferência em março de 2011, como se pode ver aqui. O juiz federal Murilo Mendes presidiu o ato, do qual participou a procuradora da República Analícia Ortega Hartz Trindade.

Observe-se que, desde janeiro de 2009, quando entrou em vigor a Lei 11.900/2009, a videoconferência já era uma opção inquestionável para o cumprimento do ato no exterior. Curiosamente, e diferentemente do que se vê noutros acordos bilaterais em matéria penal, o tratado Brasil/EUA não prevê tal instrumento, mas, como a legislação local dos dois países reconhece o método, o teleinterrogatório pôde ser executado.

Convenções internacionais

Como se não bastasse, o artigo 18, §18, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo ou UNTOC) (Decreto 5.015/2004), ao cuidar da assistência jurídica recíproca entre os Estados-Partes, estatui que:

“18. Se for possível e em conformidade com os princípios fundamentais do direito interno, quando uma pessoa que se encontre no território de um Estado Parte deva ser ouvida como testemunha ou como perito pelas autoridades judiciais de outro Estado Parte, o primeiro Estado Parte poderá, a pedido do outro, autorizar a sua audição por videoconferência, se não for possível ou desejável que a pessoa compareça no território do Estado Parte requerente. Os Estados Partes poderão acordar em que a audição seja conduzida por uma autoridade judicial do Estado Parte requerente e que a ela assista uma autoridade judicial do Estado Parte requerido.”

Regra similar está no artigo 46, §18, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) (Decreto 5.687/2006), sendo útil recordar que a Convenção de Palermo aplica-se a várias modalidades de criminalidade organizada, inclusive ao tráfico de pessoas (trata de seres humanos) e ao “contrabando” de migrantes (migrant smuggling), por força dos dois Protocolos Adicionais à UNTOC, promulgados no Brasil pelos Decretos 5.016/2004 e 5.017/2004.

Não custa assinalar que, sendo parte da Conferência de Ministros da Justiça dos Países Ibero-americanos (Comjib), é muito provável que em breve o Brasil se torne parte do Convenio Iberoamericano sobre el uso de Videoconferencia en la Cooperación Internacional entre los Sistemas de Justicia, uma vez que tal tratado foi assinado pelo Brasil, quando de sua conclusão, em 2010, na cidade de Mar del Plata (aqui).

Em suma

Enfim, tendo em vista as vantagens processuais e econômicas da videoconferência e da sua legalidade interna e internacional, não se pode ter dúvida de que sua utilização pode contribuir para uma Justiça penal mais eficiente e célere, especialmente na luta contra a corrupção, o narcotráfico e as várias modalidades de criminalidade organizada, especialmente o tráfico humano.

A Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria-Geral da República (SCI/PGR) tem condições de prestar auxílio para a realização de videoconferências e audioconferências transnacionais, tanto em casos iniciados no Brasil (cooperação ativa), quanto em procedimentos criminais de interesse de Estados estrangeiros (cooperação passiva).

Os pedidos para a realização de uma videoconferência transnacional devem ser formalizados pela autoridade judiciária, pelo Ministério Público ou pelo delegado de Polícia, nos autos apropriados, mediante a expedição de uma rogatória ou um mutual legal assistance request ao Estado estrangeiro, por intermédio da autoridade central brasileira pertinente, ou seja, o Ministério da Justiça (DRCI/SNJ), ou, nos casos de Portugal e Canadá, a Procuradoria-Geral da República (SCI/PGR).

Na Sociedade da Informação, é imperioso aplicar as novas tecnologias aos procedimentos policiais e judiciais para reduzir distâncias na cooperação internacional e para aproximar de forma eficiente os atores da persecução de crimes globais ou transnacionais.

Se, para as modernas máfias, o mundo é uma aldeia, também deve ser para os Estados. A tecnologia encurta ritos e acelera os passos da Justiça.

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