Antônio Cardoso

Força e determinação: professor da zona rural enfrenta o racismo e é aprovado em doutorado na USP

Para ele, o sentimento de hoje estar fazendo doutorado fora do estado da Bahia, ainda é algo difícil de acreditar e 'a ficha ainda não caiu'.

08/12/2021 às 11h14, Por Gabriel Gonçalves

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Atualizada em: 16h32

Gabriel Gonçalves

Natural do município de Antônio Cardoso, Ozeias de Almeida, 38 anos, nasceu e cresceu na Fazenda Santa Cruz, zona rural do município.

Aos 23 anos de idade, Ozeias deu os primeiros passos no ensino superior. Atualmente graduado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e também mestre em Planejamento Territorial pela Uefs, Ozeias é doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), uma das melhores da Amárica Latina.

Mas, até chegar aí, o preconceito e o racismo, infelizmente acompanharam o professor de geografia que atualmente trabalha no município de Santo Estevão. Ao Acorda Cidade, Ozeias contou um pouco da trajetória.

"Eu sempre vivi aqui nessa Fazenda e depois dos meus 18 anos de idade, por conta do trabalho sempre fiquei no trajeto Santo Estevão – Antônio Cardoso, até porque, aqui sempre foi a minha morada fixa. No ano de 2006, eu prestei vestibular para Geografia no ano de 2006, entrei na primeira turma e minha família sempre me deu o devido apoio, principalmente minha mãe que sempre incentivava e nunca deixou que a gente parasse de estudar. Também tive o apoio dos meus amigos, professores da Universidade e até mesmo aqui, os amigos da comunidade. Posso dizer que lá na Uefs, eu tive uma trajetória muito marcante, inclusive eu fui o orador da minha turma, eu sempre participava das aulas, discutia, produzia, participei de muitos eventos e eu me considerava como um estudante bastante ativo da Uefs. Na época, ainda nem tinha o restaurante universitário, então eu passei por algumas dificuldades em questão de alimentação, porque muitas aulas eram em tempo integral, posso dizer que passei muita fome lá na Uefs, mas só depois que foi montado o restaurante", explicou.

Foto: Ed Santos/Acorda Cidade

Embora muitos momentos positivos ficaram na lembrança de Ozeias enquanto estudava na Uefs, outras situações tristes também são carregadas até os dias de hoje, devido ao preconceito que sofreu.

"Lá na Uefs até que eu não tive problemas relacionados com o racismo, até porque e Uefs ela é bastante heterogênea, principalmente no curso de humanas, mas em outros ambientes, eu sofri com muita frequência o racismo, não apenas o declarado, aquele que você conhece e identifica, mas aqueles, apenas na forma de olhar, de tratar. Então quem passa por isso, é fácil de poder identificar. Eu lembro que no ano de 2010, estava participando de um intercâmbio em Turim na Itália, e nesse encontro Terra Madre, sempre no segundo dia, a organização fazia um evento para a Delegação Brasileira. Lá, estavam alguns representantes das delegações de países africanos, e no momento, estava tocando um samba. eu percebi que tinha um grupo da Itália que estava fazendo gestos e nos chamando de macacos. Eu me aproximei deles, fiquei olhando, meio que condenando com os próprios olhos e a organização do evento, também percebeu e logo, eles se retiraram do recinto, e infelizmente foi algo que marcou bastante em minha vida, além de outros episódios que já pararam em instâncias judiciais, mas que já foram superadas", pontuou.

De acordo com Ozeias, o interesse em prestar um vestibular em faculdade privada, nunca passou pela mente, e enfatizou que ainda no ensino médio, alguns professores não o incentivavam em estudar em universidades públicas.

"Quando eu estava no Ensino Médio, eu já pensava em fazer uma universidade pública, mas o engraçado era que quando eu comentava isso, alguns professores até me incentivavam, mas outros faziam ao contrário. Diziam que era difícil um aluno da zona rural, da escola pública entrar na universidade e que eu não deveria alimentar ilusão, eu deveria fazer curso técnico para trabalhar, mas eu nunca desanimei com isso. Sempre pensei na Uefs, nunca pensei em faculdade particular, e logo quando entrei na Uefs, o meu objetivo já era outro, ter um mestrado. Comentei com alguns colegas que também tinha a vontade em fazer doutorado em outro estado, mas imaginava que a USP seria um degrau muito alto para ser alcançado. Mas, ao decorrer da minha vida acadêmica, fui percebendo que dava sim para entrar na USP, tanto que o meu mestrado na Uefs foi logo em seguida depois da minha graduação, fiz uma especialização na Unicamp, tive a oportunidade de entrar como aluno especial do doutorado na USP, fiz a seleção, aprovado, depois passei para aluno regular dentro de um processo seletivo muito difícil, porque são quatro etapas, mas agora, a USP está me proporcionando que quanto mais eu me esforço, mais conquistas eu posso alcançar e concluir o meu doutorado com qualidade", destacou Ozeias ao Acorda Cidade.

Para ele, o sentimento de hoje estar fazendo doutorado fora do estado da Bahia, ainda é algo difícil de acreditar e 'a ficha ainda não caiu'.

"Eu tenho a impressão que a ficha ainda não caiu, porque assim que eu cheguei lá na USP, eu ficava observando que mundo é esse? Porque realmente lá é um outro mundo e logo de cara, minha orientadora me levou para fazer trabalho de campo no interior de São Paulo como Piracicaba, Ribeirão Preto, Santa Bárbara D'Oeste, e digo que é uma sensação boa, digo que não acredito onde estou, mas realmente, isso é uma realidade. Hoje eu já estou na fase de escrita da tese, já fiz a qualificação e fui aprovado, mas por conta da pandemia, o trabalho de campo ficou comprometido, mas irei pedir uma prorrogação de prazo, e posso dizer que estou no meio para o final da escrita da tese", disse.

Com o sentimento de ser o primeiro Doutor na família, e até mesmo na região de Antônio Cardoso, Ozeias de Almeida, destacou que hoje, a responsabilidade é muito grande, principalmente por ser um belo exemplo para os jovens que estão trilhando no mundo da universidade.

"Hoje eu tenho um sentimento de gratidão e também de muita responsabilidade, porque nem todos os jovens da zona rural e de escola pública, conseguem trilhar uma caminhada dessa, não por falta de vontade, nem por falta de capacidade, mas sim, por falta de oportunidade, porque infelizmente estudar no Brasil é muito difícil, sobretudo para os alunos da escola pública. Até que hoje, isso está melhorando por alguns programas de incentivo como de acesso à Universidade, depois das cotas raciais e que são importantes, mas o Brasil precisa avançar muito nessa questão, e me sinto na responsabilidade por ser um exemplo, uma inspiração e precisam conduzir essa caminhada. Acredito que minha missão enquanto pessoa, estudante formado com recursos públicos, a nossa obrigação é dar um retorno à comunidade, pois eu sempre procuro buscar outros jovens aqui do município, em ingressarem em uma universidade, permanecer em uma universidade, inclusive temos uma parceria com a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, com a Uefs também, na realização de cursinho, pré-vestibular comunitário que já ajudou muitos jovens a entrarem em uma Universidade, inclusive jovens que já estão com mestrado na UFBA, a partir da nossa iniciativa", declarou.

Para o 'próximo futuro', Ozeias declarou que pretende ser professor universitário, além de ter a oportunidade de viajar pelo Brasil e até mesmo pelo mundo.

"Meus planos para o futuro são fazer um concurso para a universidade, ser professor universitário, tenho vontade de viajar pelo Brasil e também para fora do país. Contudo, preciso também fazer um curso de idiomas, principalmente inglês e conhecer outros lugares e sempre poder ajudar os mais jovens do meu município. Acredito que a gente precisa fazer muito mais pela educação de Antônio Cardoso, nossos jovens merecem, eles possuem essa carência na educação, porque a qualidade está muito aquém do que é desejado, do que é necessário para o nosso povo. Então eu tenho esse sonho também em poder contribuir com o crescimento da minha cidade", concluiu.

Grande incentivadora das conquistas do filho, dona Valdemira Sena de Almeida, 70 anos de idade, informou à reportagem do Acorda Cidade que sempre trabalhou no campo, não teve a oportunidade de estudar, mas persistiu que todos os filhos pudessem estudar e ter uma formação.

Foto: Ed Santos/Acorda Cidade

"Eu fico muito orgulhosa e tenho um grande prazer do que ele se tornou hoje, mas ele ainda precisa seguir em frente e dar exemplo a todos os outros. Eu sofri muito para criar todos eles, meu esposo faleceu, então tive que tomar conta dos seis filhos sem nenhum tipo de renda, mas Ozeias sempre falou, eu quero estudar em tal lugar, e eu sempre dizia, estude, e o que tiver para lhe dar, eu darei. E hoje, graças a Deus, os seis filhos são formados, e ele sempre dizia, minha mãe, não precisa trabalhar demais porque eu vou lhe assumir, e desde cedo nesse corre corre, trabalhando em Santo Estevão, estudando em Feira de Santana e hoje me orgulho do meu filho, até porque eu não tive os estudos como todos tiveram, hoje só sei assinar o meu nome, meu esposo que era estudioso, foi vereador, foi professor, mas eu sempre trabalhei na roça com e enxada, e hoje meu filho é um grande orgulho fazendo o que ele gosta", concluiu.

 

Com informações do repórter Ed Santos do Acorda Cidade

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