Cultura
Ry: a cidade francesa que diz ser o vilarejo de Madame Bovary
Apesar do escritor Gustave Flaubert ter insistido que o cenário da história é fictício, município da Normandia vende até frutas plantadas por Charles Bovary
31/07/2018 às 09h04, Por Kaio Vinícius
Acorda Cidade
Yonville l’Abbaye, capital literária da rotina provincial e dos clichês dos romances de todo o século 20, era descrita por Gustave Flaubert simplesmente como um "lugar que não existe". Porém, desde que Maxime du Camp, amigo e companheiro de viagem do célebre escritor francês, contou que o germe do clássico Madame Bovary, publicado em 1857, foi o escandaloso suicídio de Delphine Delamare, esposa do médico da pequena cidade de Ry, na região francesa da Normandia, a 142 km de Paris, a ficção e a realidade se tornaram uma coisa só.
Uma placa na parede da igreja de Ry, colocada em 1990 pela Fédération Nationale des Ecrivains de France, cujos membros deveriam ser mais circunspectos sobre as questões entre o real e a ficção, afirma que Delamare (1822-1848) e Emma Bovary são a mesma mulher. Outras placas, mais antigas e hoje deterioradas, estão intercaladas ao longo da cidade, anunciando ou a farmácia do Sr. Homais ou o escritório do notário Guillaumin – personagens do clássico de Flaubert.
Um dos guias turísticos da Normandia diz que o restaurante Le Bovary, hoje chamado de La Table d'Oscar, é na verdade o Café Français do livro, que a residência do casal Bovary existe e serve hoje como um escritório de advocacia e que o prédio ocupado pelo Crédit Agricole era o Hôtel de Rouen nos tempos de Flaubert, e que foi sua inspiração para o albergue Lion d'Or da obra.
Flaubert teria desdenhado de todas as placas, assim como alguns leitores ainda o fazem. O que primeiro tira força do turismo literário em Ry é como a cidade conforma mal as descrições feitas por Flaubert no segundo capítulo de Madame Bovary. Não existe uma rua com "o comprimento de um tiro de fuzil", assim como Ry não se desenvolve ao longo do rio como a Yonville l’Abbaye do livro. Ao contrário, o Crevon corre paralelo à avenidas da cidade, e a ponte sobre ele marca, na verdade, o final do município.
As posições da praça do mercado, do hotel e da farmácia estão todas erradas em relação ao livro, e se o turista tenta arriscar uma comparação entre Ry e Yonville l’Abbaye, provavelmente não encontra nenhuma grande similaridade.
Apesar disso, existem duas características em Ry que provavelmente reforçam a leitura de Madame Bovary: a cidade está a apenas 20 km quilômetros de Rouen, mas parece ser mais distante. Pertence à economia agrícola da Normandia e seu ar de isolamento provincial em relação à vida urbana mesmo estando tão perto seria inimaginável mesmo na Inglaterra.
A segunda é o estranho Musée d'Automates, que funciona em uma antiga prensa de cidra ao lado da ponte sobre o rio. Em 1977, um relojoeiro francês, Michel Burgaud, instalou ali uma exibição em tábuas mecânicas com cenas da obra de Flaubert. Ao apertar um botão, trezentos bonecos de palco giravam bruscamente e viravam enquanto encenavam o romance — ao fundo, os cenários transformavam automaticamente os prédios Ry em Yonville l’Abbaye. Hoje acredita-se que foi ali que Emma se suicidou com arsênico — assim como Delamare.
Ry, de qualquer forma, respira o livro: os moradores bebem em um bar chamado Le Flaubert, comem no Le Bovary, compram presentes em uma loja batizada de Rêve Ry em alusão às aspirações românticas de Emma, e a própria cidade se reconhece como a fictícia Yonville l’Abbaye para poder capitalizar a fama.
Beneficiados pelas passagens baratas entre cidades francesas, que enchem a cidade de leitores curiosos, os comerciantes vendem pêras de uma árvore "plantada" por Charles Bovary que são vendidas por preços exorbitantes, e a ama da família Delamare, Augustine Ménage, "que era obrigada a se dirigir à sua senhora em terceira pessoa", conseguiu entrar no século 20, gastando seus últimos anos de vida entretendo turistas com memórias da Emma Bovary que, de fato, "existiu".
As vizinhanças de Ry também são parte do "roteiro Bovary": é possível seguir uma rota de Emma que passa pelos pastos em que ela se pôs à procura da sua ama de leite, a casa de Rodolphe e o castelo de Gratianville, onde vivia o amante de Delphine Delamare, Louis Campion, e acaba nas montanhas ao sul da cidade, onde é possível avistá-la de longe e lugar em que Emma e Rodolphe dividiram uma tarde de outubro.
“Algumas brumas espalhavam-se pelo horizonte, entre o contorno das colinas; outras, rasgando-se, subiam, perdiam-se. Às vezes, quando as nuvens afastavam-se, sob um raio de sol percebia-se ao longe os telhados de Yonville, com os jardins à beira do riacho, os pátios, os muros e o campanário da igreja. (…) Da altura onde estavam, todo o vale parecia um imenso lago pálido, evaporando-se no ar”, diz um trecho do livro (Editora LP&M, 2008).
Para quem não leu o livro, talvez Rouen, a histórica capital da Normandia e cidade natal de Flaubert (e de Joana d'Arc), seja um destino mais aprazível: destruída pelos ataques aéreos da Segunda Guerra Mundial e reerguida em seguida, hoje ela oferece um misto de história sacra e arquitetura moderna. O melhor exemplo é a Catedral Saint Joan d'Arc, cujo prédio foi projetado nos anos 1970 por Louis Arretche, mas possui um interior com peças do século 16. Mesmo em Rouen, no entanto, há algo do casal Bovary, como insistem os guias franceses.
A melhor opção, no entanto, segue sendo mais barata e fácil: comprar o clássico de Flaubert em qualquer livraria e ler os pensamentos e tristezas de Emma Bovary na fictícia Yonville l’Abbaye.
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