Cooperação Internacional

A Cesare o que é de Cesare

A Corte de Cassação francesa confirmou essa decisão em 2005 em grau de recurso. Em seguida, o primeiro-ministro da França autorizou a entrega de Battisti a Roma.

17/12/2017 às 05h52, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

Eu sei que essa expressão é surrada, mas não resisti a ela. Cesare Battisti foi condenado definitivamente pela Justiça italiana e deve receber a justa retribuição pelo que fez: cumprir a sentença que lhe foi imposta pelos quatro crimes de homicídio que cometeu nos anos 1970, na Itália, como integrante da organização de extrema esquerda Proletari Armati per il Comunismo (PAC).

Battisti foi condenado em Milão a prisão perpétua pelos homicídios de:

– Antonio Santoro, morto em Udine em 6 de junho de 1977.

– Pierluigi Torregiani, morto em Milão em 16 de fevereiro de 1979

– Lino Sabbadin, morto em Mestre em 16 de fevereiro de 1979

– Andrea Campagna, morto em Milão em 19 de abril de 1979.

Sem querer enfrentar seu julgamento na Itália, Battisti fugiu para o México e depois para a França. Em 2004, o Tribunal de Apelação de Paris autorizou sua extradição ao seu país de origem.

A Corte de Cassação francesa confirmou essa decisão em 2005 em grau de recurso. Em seguida, o primeiro-ministro da França autorizou a entrega de Battisti a Roma.

Em recurso administrativo da defesa, o Conselho de Estado francês, órgão de última instância da jurisdição administrativa, ratificou naquele mesmo ano a decisão de entrega. Battisti ainda tentou proteção na Corte Europeia de Direitos Humanos, mas, em dezembro de 2006, a CEDH, com sede em Estrasburgo, por unanimidade, rejeitou seu recurso e decidiu que ele poderia ser extraditado para a Itália. Eis um trecho da decisão:

“La Cour constate dès lors, au vu des circonstances de l’espèce, que le requérant était manifestement informé de l’accusation portée contre lui, ainsi que du déroulement de la procédure devant les juridictions italiennes et ce, nonobstant sa fuite. Par ailleurs, le requérant, qui avait délibérément choisi de rester en situation de fuite après son évasion de 1981, était effectivement assisté de plusieurs avocats spécialement désignés par lui durant la procédure. Sur ce dernier point, la Cour observe au demeurant qu’il n’a pas porté à l’attention des autorités concernées d’éventuelles difficultés qu’il aurait rencontrées dans la préparation de sa défense avec ses conseils désignés (Hermi, précité, §§ 96-97). (CEDH, Battisti c. France, Cour (Deuxième Section), 12 déc. 2006, n° 28796/05)

O que Battisti fez? Muito antes da definição de seu quadro jurídico na França, ele já fugira para o Brasil. Sua prisão extradicional foi decretada pelo min. Celso de Mello, do STF, em março de 2007 e cumprida poucos dias depois.

Na Extradição 1085 (STF, Pleno, p. 16/12/2009, rel. min. Cezar Peluso), a Suprema Corte brasileira, competente para todos os casos de extradição passiva conforme o art. 102, inciso I, da Constituição, decidiu de ofício tornar nulo o ato administrativo do Ministro da Justiça que, no curso do procedimento extradicional, concedera refúgio a Cesare Battisti. Evidentemente era um subterfúgio. Battisti jamais pedira asilo ou refúgio ao México, à França ou mesmo ao governo brasileiro, quando aqui chegou.

Resolveu fazê-lo extemporaneamente, como forma de mais uma vez “fugir”, desta vez por uma escapadela jurídica, politicamente talhada para sua indefensável situação de múltiplo homicida condenado por um Estado europeu. Tal decisão tornou-se irrecorrível na Itália e foi chancelada por tribunais franceses e pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH).

Segundo a Lei 9.474/1997, a apresentação de pedido de refúgio obsta o curso do procedimento extradicional. Era este o objetivo imediato do pedido. A finalidade última era encerrá-lo definitivamente, caso o refúgio fosse concedido.

Da Extradição

Art. 33. O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio.

Art. 34. A solicitação de refúgio suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio.

A solicitação de refúgio foi feita em 2007. Em dezembro do mesmo ano, o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE) indeferiu o pedido de Battisti. Porém, o ministro da Justiça de então deu provimento a recurso administrativo da defesa e reconheceu (ilegalmente) a condição de refugiado, tendo invocado o art. 1º, inciso I, da Lei 9.474/1997:

Como dito, o STF decidiu, de ofício, invalidar a concessão do refúgio em preliminar da extradição (EXT 1085):

“2. Extradição. Passiva. Refúgio ao extraditando. Concessão no curso do processo pelo Ministro da Justiça. Ato administrativo vinculado. Não correspondência entre os motivos declarados e o suporte fático da hipótese legal invocado como causa autorizadora da concessão de refúgio. Contraste, ademais, com norma legal proibitiva do reconhecimento dessa condição. Nulidade absoluta pronunciada. Ineficácia jurídica consequente. Preliminar acolhida. (…) Eventual nulidade absoluta do ato administrativo que concede refúgio ao extraditando deve ser pronunciada, mediante provocação ou de ofício, no processo de extradição”.

O STF também afastou as alegações apresentadas pela defesa de existência de crime político e violação do devido processo legal na Itália, tendo, ao fim, autorizado a extradição de Battisti à Itália:

“3. Extradição. Passiva. Crime político. Não caracterização. Quatro homicídios qualificados, cometidos por membro de organização revolucionária clandestina. Prática sob império e normalidade democrática institucional de Estado democrático de direito, sem conotação de reação legítima contra atos arbitrários ou tirânicos. Carência de motivação política. Crimes comuns configurados. Preliminar rejeitada. Voto vencido. Não configura crime político para fim de obstar a acolhimento de pedido de extradição, homicídio praticado por membro de organização revolucionária clandestina, em plena normalidade institucional de Estado democrático de direito, sem nenhum propósito político imediato ou conotação de reação legítima a regime opressivo”.

No entanto, a Corte foi tímida no seu pronunciamento. Por maioria, o STF estabeleceu que compete ao presidente da República dar a palavra final em extradição. Ao Tribunal cabe negar definitivamente a extradição, ou autorizá-la para que o chefe de Estado a conceda ou não, em decisão discricionária.

“8. Extradição. Passiva. Executória. Deferimento do pedido. Execução. Entrega do extraditando ao Estado requerente. Submissão absoluta ou discricionariedade do presidente da República quanto à eficácia do acórdão do Supremo Tribunal Federal. Não reconhecimento. Obrigação apenas de agir nos termos do tratado celebrado com o Estado requerente. Resultado proclamado à vista de quatro votos que declaravam obrigatória a entrega do extraditando e de um voto que se limitava a exigir observância do tratado. Quatro votos vencidos que davam pelo caráter discricionário do ato do presidente da República. Decretada a extradição pelo Supremo Tribunal Federal, deve o presidente observar os termos do tratado celebrado com o Estado requerente, quanto à entrega do extraditando”.

Sendo assim, por maioria, o STF reconheceu que “a decisão de deferimento da extradição não vincula o presidente da República, nos termos dos votos proferidos pelos senhores ministros Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Marco Aurélio e Eros Grau.” (EXT 1085).

Porém, os ministros que abraçaram a tese minoritária, entre eles o relator min. Cezar Peluso, é que estavam com a razão. A decisão do STF deveria ser impositiva, e não meramente autorizativa da extradição. Esta matéria não é mais de reis, chanceleres ou presidentes; é de juízes. Indício fortíssimo disso é a evolução do processo extradicional na União Europeia e em outras regiões do globo para ritos exclusiva ou predominantemente judiciais na execução dos chamados mandados regionais de detenção e entrega, para transferência de custódia em matéria de captura de foragidos. Disse Peluso em seu voto:

“De modo que, em resumo, preenchidos todos os requisitos que autorizam a extradição e, por conseguinte, não caindo o pedido em nenhuma das hipóteses de recusa ou de recusa facultativa, está a Parte requerida obrigada a entregar a outra as pessoas procuradas que se encontrem em seu território. Este é o princípio capital da teoria e prática dos tratados, pois não tem nexo nem senso conceber que sejam celebrados para não serem cumpridos por nenhum dos Estados contraentes! Tenho, assim, que, no caso, uma vez satisfeitas todas as exigências para concessão de extradição, sem caracterizar-se nenhuma das hipóteses de recusa previstas no art. 6 do Tratado e, por conseguinte, deferido o pedido do Estado requerente, não se reconhece discricionariedade legítima ao presidente da República para deixar de efetuar a entrega do extraditando.”

Na mesma linha seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes:

“(…) ante a existência de tratado bilateral de extradição, deve o Poder Executivo cumprir com as obrigações pactuadas no plano internacional e efetivar a extradição. A discricionariedade existente é sempre limitada pela lei interna e pelo tratado de extradição”.

Com uma sútil variante, no julgamento da extradição de Battisti foi lembrada posição do min. Celso de Mello, na EXT 1222, de Israel, quando entendeu que, em havendo tratado entre as partes – que seja bilateral ou multilateral, digo eu –, há, para o governo, a obrigação convencional de realizar a entrega (transferência de custódia), uma vez tenha havido a autorização do STF. Assim, se a extradição for concedida com base em promessa de reciprocidade, o presidente tem larga margem de discricionariedade. Em tendo sido deferida com base em tratado, essa ampla margem não existe. É precisamente a situação de Battisti, cujo pedido extradicional baseou-se no tratado bilateral ítalo-brasileiro de 1989:

“Se o fundamento jurídico do pleito extradicional residir em compromisso de reciprocidade (…), prevalecerá, aí, então, o regime de ampla discricionariedade. Havendo, no entanto, tratado bilateral de extradição, as relações jurídicas entre as Altas Partes Contratantes reger-se-ão pelo que dispuser a convenção internacional entre ambas celebrada, incidindo, então, na espécie, o velho adágio ‘pacta sunt servanda’, eis que, em tal hipótese, o Estado brasileiro sujeitar-se-á aos vínculos obrigacionais derivados do referido acordo. Nessa última hipótese, em que a extradição encontra fundamento jurídico em tratado internacional, a discrição governamental dá lugar à obrigação convencional, fundada no acordo de extradição, cujas cláusulas vincularão os Estados pactuantes, que estarão, assim, obrigados a cumprir seus deveres jurídicos, sob pena de configuração, na hipótese de inadimplemento, de grave responsabilidade internacional do Estado transgressor” (EXT 1222/Israel, min. Celso de Mello).

Prevaleceu, por apertada maioria, a tese de que cabia ao presidente decidir por último. Em extradição, a derradeira palavra seria do presidente da República, pois, ainda se entende que o STF somente autoriza a extradição, não a determina.

Era fácil intuir o que viria. Foi assim então que, em 31 de dezembro de 2010, o presidente Luís Inácio Lula da Silva, baseando-se num parecer da Advocacia Geral da União (AGU), negou a entrega de Cesare Battisti à Itália com base no art. 3.1.f. do tratado bilateral de 1989. E errou.

“Processo nº 08000.003071/2007-51. Parecer nº AGU/AG-17/2010, adotado pelo Advogado-Geral da União Substituto, referente ao pedido de Extradição nº 1.085, requerido pela República Italiana. Em face dos fundamentos, aprovo o Parecer e nego a extradição”.

Com isto um tratado internacional em vigor foi descumprido e um criminoso condenado pela Justiça criminal de um Estado democrático de Direito beneficiou-se de uma ilegalidade cometida no Brasil. Ou foi premiado com o que há anos chamo de “cafuné processual”, graças à simpatia de Lula por uma variante tropical da doutrina Mitterrand.

Desde então, uma série de idas e vindas, twists and turns, tem marcado a estada de Cesare Battisti no Brasil, onde vive uma dolce vita.

É bem verdade que nada disso teria acontecido se o STF houvesse evoluído em sua jurisprudência e conferido conteúdo puramente jurídico a pedidos extradicionais. Ou ao menos se lhe tivesse dado caráter predominantemente jurídico.

Extradição é matéria de direito processual penal, ainda que com evidente inserção no direito internacional. Como medida de cooperação jurídica internacional, sua solução deveria seguir apenas os critérios de justiça e legalidade aferidos pelo STF, e não considerações políticas ocasionais ou vicissitudes ideológicas do Chefe de Estado.

Deveria também observar contingências de direitos humanos e preocupações humanitárias, como deve ser sempre no moderno direito cooperacional. Mas nenhum avanço deveria ser permitido ao Poder Executivo para além daí, no campo extradicional, uma vez que para cogitações outras, avultam os institutos do asilo e do refúgio. E estes eram incabíveis na situação concreta.

Quando não caiba nem um nem outro, fora das hipóteses de crimes políticos e de opinião, cuja afirmação no caso concreto compete ao próprio STF, a contenciosidade na extradição é limitada. Por que deveria haver na seara extradicional margem tão larga de discricionariedade política para impedir a entrega a outra democracia de alguém que lá cometeu crimes comuns, foi legalmente acusado, devidamente julgado e justamente condenado por suas condutas?

Infelizmente foi isso o que ocorreu em 2009, quando a extradição de Batistti foi deferida pelo STF, e, no ano seguinte, o governo federal foi autorizado a entregá-lo e optou pela não entrega, com uma justificativa similar a uma recauchutagem de argumentos incabíveis. Esse imbróglio resultou na soltura de Battisti em junho de 2011.

Para o bem da luta contra a impunidade, o respeito aos tratados e para evitar a consolidação de paraísos juridicamente seguros (safe havens) para criminosos internacionais ou estrangeiros, um dia isso deve mudar. Ou seja, um dia o STF tomará a si a decisão final em matéria extradicional, pois não há outra interpretação possível na Constituição (princípio cooperativo e repúdio ao terrorismo) ou na Lei Extradicional – Lei de Migração (Lei 13.445/2017), em vigor desde 21 de novembro de 2017.

Enquanto esperamos, vejamos qual o prognóstico da situação de Battisti.

Há uma decisão judicial condenatória, de cunho penal, na Itália, que faz coisa julgada e deve ser respeitada.

Diante da ordem jurídica brasileira, há duas opções à disposição do Estado italiano:

a) requerer a entrega de Battisti, como consequência da extradição, para que siga a Roma para cumprimento de pena; ou

b) pedir que a condenação imposta em Milão seja executada no Brasil, com base na Lei 13.445/2017, após homologação e modulação pelo STJ.

Os crimes de que se cogita são graves, o mais grave que se pode cometer: homicídio, múltiplos homicídios.

A Itália é uma democracia e tem com o Brasil um tratado de extradição assinado em 1989 e em vigor desde 1993 (Decreto 863/1993).

É um país cooperante, tanto que em 2015 nos entregou, contra todas as previsões em contrário, o foragido Henrique Pizzolato, condenado por peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro na Ação Penal 470/DF, mais conhecida como Mensalão.

Diante dos crimes cometidos por Battisti, um pedido de extradição foi enviado ao Brasil. No cenário puramente jurídico, ele teria sido extraditado a Roma e estaria lá cumprindo a pena a que foi condenado, com as condições limitativas (máximo de 30 anos, à luz do art. 75 do CP), rotineiramente impostas pelo STF. Vide por exemplo a EXT 855, rel. Celso de Mello, j. em 01/11/2006.

Na prática, com a decisão tomada por Lula no “Dia do Fico”, os direitos de um homicida condenado mereceram melhor valoração pelo (chefe de) Estado brasileiro do que os direitos das quatro vítimas e seus familiares e a coisa julgada produzida pela Justiça italiana.

O STF autorizou a extradição. Um ato político a impediu. Repito: pedidos de extradição não devem ser contaminados por decisões de fundo político. Não havia risco humanitário ou de perseguição política. Não cabia refúgio:

“Não caracteriza a hipótese legal de concessão de refúgio, consistente em fundado receio de perseguição política, o pedido de extradição para regular execução de sentenças definitivas de condenação por crimes comuns, proferidas em observância do devido processo legal, quando não há prova de nenhum fato capaz de justificar receio atual de desrespeito às garantias constitucionais do condenado“ (EXT 1085).

Tampouco cabia ou cabe asilo, hoje regulado pelo art. 27 da Lei 13.445/2017.

“Art. 27. O asilo político, que constitui ato discricionário do Estado, poderá ser diplomático ou territorial e será outorgado como instrumento de proteção à pessoa.

Parágrafo único. Regulamento disporá sobre as condições para a concessão e a manutenção de asilo.”

O Estado brasileiro violou a lei regente (o tratado) invocando falsos motivos para não entregar o Sr. Battisti à custódia de Roma. Alegou-se por escrito que teria havido ou poderia haver violação dos direitos fundamentais do extraditando na Itália, um Estado membro da União Europeia, cujo procedimento processual já havia sido conferido pela CEDH.

O descumprimento do tratado bilateral pelo Brasil é preocupante. Segundo o art. 26 da Convenção de Viena de 1969 (Decreto 7.030/2009), “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé”. E isto não ocorreu.

No habeas corpus preventivo (HC 148.408/DF, rel. min. Luiz Fux) que impetrou contra possível transferência de custódia por ordem do presidente Michel Temer, a defesa de Battisti listou uma série de argumentos para impedir sua entrega à Itália: a existência de prescrição, a superveniente decadência, a existência de filhos brasileiros, a necessidade de estabilização das decisões jurídicas etc.

A liminar foi deferida em outubro de 2017, mas o procedimento foi reautuado como Reclamação 29.066/DF.

Quais as opções do STF?

O fato de um foragido ser casado e ter filho menor no País não é impeditivo à extradição. É óbice à deportação ou a expulsão, mas não à cooperação penal extradicional.

Por outro lado, a alegação de prescrição não tem valia, porque esta tese já foi afastada pelo STF na EXT 1045 e, como se lê no artigo 3.1.b do tratado ítalo-brasileiro de extradição de 1989, o marco prescricional a considerar é o incidente na data do pedido extradicional, e não o da decisão deste pedido ou o da entrega (transferência de custódia) do foragido.

Ainda que assim não fosse (e é, em razão do tratado, que tem força de lei federal ordinária), a alegação de prescrição pode ser afastada mediante a invocação da tese usada pelo Procurador-Geral da República Rodrigo Janot no caso Joseba Gotzon Vizan Gonzalez (Ext 1501, Espanha, rel. min. Edson Fachin), membro da organização terrorista Pátria Basca e Liberdade (ETA), segundo a qual os crimes pelos quais Batistti foi condenado são imprescritíveis porque consistiram em ação de grupo armado contra o Estado democrático, conforme o art. 5º, XLIV, CF:

“XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;”

Ninguém ignora que Cesare Battisti era integrante da organização terrorista (ou paramilitar, não importa) Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), que pretendia modificar o regime de governo italiano mediante a luta armada. E foi nessa condição de militante “subversivo” que Battisti cometeu os homicídios que resultaram em sua condenação.

A alegação de quebra da segurança jurídica (art. 5º, CF) também é frágil. É evidente que a Administração Pública pode rever seus atos. Esta questão está consolidada na jurisprudência do STF, na forma da Súmula 473:

Súmula 473: “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

Ninguém pode alegar, em seu favor, a estabilidade de uma situação de ilegalidade e ilegitimidade, nos planos do direito constitucional (dever de cooperar e de repudiar o terrorismo) e do direito internacional, quando há diretrizes constitucionais de prevalência dos direitos humanos e de repúdio ao terrorismo e o dever de cooperar.

A lista de temas defensivos é extensa, mas débil. Seu melhor argumento, porém, é a alegação de decadência. Segundo o art. 54 da Lei 9.784/1999, a Administração Pública tem prazo de 5 anos para rever seus atos.

Existe um RE 817.338/DF (rel. Min. Dias Toffoli) de repercussão geral no STF que pretende decidir se a Administração pode revogar atos após o curso do prazo decadencial:

“Tema 839/RG: possibilidade de um ato administrativo, caso evidenciada a violação direta ao texto constitucional, ser anulado pela Administração Pública quando decorrido o prazo decadencial previsto na Lei 9.784/1999 (RE 817338).”

São:

“Recursos extraordinários em que se discute, à luz dos arts. 2º, 5º, II, XXXVI e LXIX, e 37, caput, da Constituição Federal e do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a possibilidade de um ato administrativo, caso evidenciada a violação direta do texto constitucional, ser anulado pela Administração Pública quando decorrido o prazo decadencial previsto na Lei nº 9.784/1999.”

É incerto se a decisão desse tema em repercussão geral ajudará a resolver, a tempo, o caso Battisti, mas podemos sim dizer que o ato presidencial que nega a entrega de alguém procurado por outro país para extradição não é um ato administrativo qualquer, mas, como reconheceu o STF na EXT 1085. Trata-se de um “autêntico ato de soberania” ou “ato de vontade soberana de um Estado” (ato político), que não fica sujeito a regras ordinárias de direito administrativo, mas sim a compromissos internacionais e ao dever de cooperação (art. 4º, CF), sob a égide do princípio favor comissionis, segundo o qual as dúvidas em matéria de cooperação resolvem-se em favor do Estado requerente, sempre que a decisão alvitrada não viole (e não viola) direitos fundamentais da pessoa humana em questão.

As relações internacionais são fluidas. O quadro hoje é outro. E, se o STF, delegou ao presidente da República a decisão de entregar ou não um extraditando a Estado estrangeiro, por ser ele supostamente o intérprete último da vontade jurídico-penal, internacional do Estado brasileiro, é justo e adequado que caiba somente ao chefe de Estado decidir se as condições que levaram à primeira decisão se mantêm, ou se não é caso de revê-la, para além das limitações do direito administrativo ordinário, já que incidentes as idiossincrasias e a volatilidade da diplomacia internacional.

Vejo a aplicação da Súmula 473 do STF pelo governo como solução, seja para a revogação do ato presidencial ou para sua invalidação, tendo em mira o dever constitucional e internacional de cooperar e considerando-se a falsidade dos motivos invocados pelo governo de então, já que não havia e nunca houve ameaça a direitos fundamentais de Battisti com sua transferência compulsória à Itália.

Por tudo isso, tecnicamente, o Sr. Battisti pode ser entregue à Itália em cumprimento à decisão de extradição, proferida pelo STF em 2009. E deve ser porque, como se vê no art. 4º, incisos II, VIII e IX, da Constituição, nas suas relações internacionais, a República Federativa do Brasil rege-se pelos princípios da prevalência dos direitos humanos (também os das quatro vítimas de Battisti), pelo repúdio ao terrorismo (como a da organização que o extraditando integrava) e pela cooperação entre os povos.

Sendo representante do Estado brasileiro e condutor das relações internacionais do País, o presidente deve observar essas diretrizes constitucionais na cooperação jurídica extradicional.

Como argumento de reforço, que, creio, põe pá de cal nesta discussão, há a inegável precariedade da autorização de residência que foi concedida pelo governo a Cesare Battisti, após frustrado seu pedido de refúgio. Cesare Battisti não pode ser expulso do Brasil, porque tem família brasileira que dele depende (art. 55, II, letras “a” e “b”, da Lei 13.445/2017). Tampouco pode ser deportado. Mas o governo não pode revogar o seu visto ou sua autorização de residência?

Segundo o art. 3º do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) – vigente à época do fato, mas revogado em 21 de novembro de 2017 pela Lei de Migração (Lei 13.445/2017) –, “a concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais.” Vale reafirmar: há uma evidente precariedade que marca a situação jurídica de Cesare Battisti, que não é cidadão brasileiro, não é refugiado nem recebeu asilo.

Insisto no ponto: a decisão do governo do presidente Lula foi ilegal, porque, ao tempo em que foi adotada, a Lei 6.815/1980 proibia a concessão de visto a condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira (art. 7º, inciso IV, do Estatuto do Estrangeiro).

Esta regra foi repetida na Lei 13.445/2017. Pelo art. 30, §1º, da nova Lei de Migração, a situação de Battisti não muda:

“§1º. Não se concederá a autorização de residência a pessoa condenada criminalmente no Brasil ou no exterior por sentença transitada em julgado, desde que a conduta esteja tipificada na legislação penal brasileira”.

A atual legislação ressalva apenas as situações de condenação por infração penal de menor potencial ofensivo, tratamento de saúde, acolhida humanitária ou reunião familiar e protege pessoa que seja beneficiária de tratado em matéria de residência e livre circulação. Nenhuma dessas franquias atende Battisti.

Diz o art. 34 da Lei de Migração que poderá ser negada autorização de residência com fundamento nas hipóteses previstas nos incisos I, II, III, IV e IX do art. 45. A situação do inciso III impede a concessão de residência a pessoa condenada ou que responda a processo em outro país por crime doloso passível de extradição segundo a lei brasileira.

Conforme o art. 132 do Decreto 9.199/2017, que regulamenta a Lei de Migração, a autorização de residência não será concedida a pessoa condenada criminalmente no País ou no exterior por sentença transitada em julgado, desde que a conduta esteja tipificada na legislação penal brasileira, ressalvadas as hipóteses em que a conduta caracterize infração de menor potencial ofensivo; o prazo de cinco anos, após a extinção da pena, tenha transcorrido; o crime pelo qual o imigrante tenha sido condenado no exterior não seja passível de extradição ou a punibilidade segundo a lei brasileira esteja extinta.

Pelo art. 133, inciso III, do Regulamento, poderá ser negada a residência a pessoa condenada ou que estiver respondendo a processo em outro país por crime doloso passível de extradição segundo a lei brasileira.

Em se tratando de reclamação (reautuação determinada pelo relator), caberá à 1ª Turma do STF (art. 9º, inciso I, alínea “c”, do Regimento Interno do tribunal) decidir se o presidente Temer pode revogar o ato do presidente Lula, para que Battisti seja entregue. Fosse um habeas corpus impetrado contra ato do presidente (como originariamente era), caberia ao Plenário do STF decidir a questão, consoante determina o art. 6º, inciso I, alínea “a”, do Regimento Interno.

Não há qualquer abalo à ideia de segurança jurídica nesta hipótese. A permanência de um estrangeiro em outro país é sempre precária, quando não se trate de refugiado. António, Pierluigi, Lino e Andrea. Esses sãos os nomes das vítimas de Cesare. Não podemos esquecer.

Que me perdoem a crueza, mas a única situação estável nessa lamentável página da falta de cooperação internacional brasileira é a das vítimas do Sr. Battisti. Que todos os caminhos jurídicos o levem de volta a Roma.

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