Poder Judiciário

O art. 385 do CPP e o juiz inquisidor

Ao longo dos anos, alguns casos deste jaez têm-me passado pelas mãos. A última vez, na semana passada, foi na jurisdição eleitoral.

04/06/2013 às 09h35, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

Frequentemente surge a indagação: o juiz pode condenar o réu se o Ministério Público pedir sua absolvição?
 
Para uns a resposta é sim. Para mim, é não.
 
Ao longo dos anos, alguns casos deste jaez têm-me passado pelas mãos. A última vez, na semana passada, foi na jurisdição eleitoral. Em alegações finais, a acusação e a defesa pediram a absolvição de três acusados numa ação penal pelo delito de corrupção eleitoral (art. 299 do CE), mas o juiz zonal condenou um deles e absolveu os demais.
 
A defesa interpôs recurso criminal (equivalente à apelação), e o MP zonal apresentou suas contrarrazões. Ambas as petições recursais pretendiam a absolvição do réu.
 
Manifestei-me nos autos, como PRE Substituto (órgão do Ministério Público Eleitoral em segundo grau), pelo provimento do recurso defensivo, para que o réu remanescente também fosse absolvido e sustentei, como preliminar, a não recepção do art. 385 do CPP.
 
Não pode o magistrado condenar o réu diante de pedido de absolvição do titular da ação penal, porque isto ofende o dever objetivo de imparcialidade, fere o devido processo legal e viola o princípio acusatório, que prevê um processo penal de partes.
 
A controvérsia gira em torno do art. 385 do CPP de 1941, que assim dispõe:
Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
 
Diga-se de início que tal dispositivo se aplica à ação penal pública, porque a ação penal privada tem regra própria, no art. 60, inciso III, do CPP, que a considera perempta “quando o querelante deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais”. Neste caso, o juiz extingue a punibilidade do réu (art. 109, IV, do CP).
 
Inserido numa legislação gestada no Estado Novo, o art. 385 do CPP não foi recepcionado pela Constituição de 1988, que abraçou o sistema acusatório, caracterizado pela separação absoluta entre as funções de acusar e julgar. Promotor não julga; juiz não acusa nem condena sem acusação.
Faltando a acusação estatal (seja a inicial, correspondente à denúncia, ou a derradeira, a das alegações finais), não como proferir decisão condenatória, sem que o juiz se transforme em parte no processo penal e autor da tese acusatória abandonada pelo dominus litis.
 
No modelo acusatório, a separação entre as figuras do promotor e do julgador exerce uma dupla função de garantia, de modo que um cidadão não seja acusado senão pelo seu promotor natural e julgado por um juiz imparcial. Não cabe ao juiz assumir o papel de acusador em qualquer das etapas do procedimento, sob pena de afastar-se da missão que lhe reservam a Constituição (art. 5º, incisos XXXVII e LIII) e os tratados, especialmente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14) e o Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º):
Art. 5º. […]
XXXVIInão haverá juízo ou tribunal de exceção;
LIIIninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
Artigo 8º – Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
 
O inciso LIII do art. 5º da CF reclama uma leitura atenta, pois dele são extraídos os princípios do promotor natural e do juiz natural. Quanto ao primeiro, é forçoso convir que, nas ações penais públicas – e ressalvada a ação penal privada subsidiária –, cabe privativamente ao Ministério Público processar alguém por uma infração penal qualquer. Se a autoridade processante estatal – a única competente para acusar o réu naquela jurisdiçãoabandonar fundamentadamente a pretensão punitiva, não pode esse mesmo Estado condená-lo.
 
a imparcialidade do juiz tem natureza objetiva e subjetiva, o que afasta o julgador do papel de catalizador ou de propulsor da pretensão punitiva. Mesmo que subjetivamente se convença da responsabilidade criminal do acusado, o juiz estará objetivamente vinculado ao dever de isenção, que deriva do seu papel de terceiro desinteressado (inclusive no tocante à condição da ação “interesse de agir”).
 
O juiz pode muito mas não pode tudo. Como garantidor dos direitos fundamentais do acusado e do seu estado de inocência, o juiz criminal é antes de mais nada um óbice   à pretensão condenatória do que um facilitador dela. Deste modo, não tem respaldo constitucional o art. 385 do CPP, que foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro sob a égide da Constituição autoritária de 1937, num processo penal marcadamente inquisitivo.
 
Este tema foi enfrentado pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no RESE 1.0024.05.702576-9/001:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITOPRONÚNCIAABSOLVIÇÃO DOS RÉUS DECRETADAPEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAISVINCULAÇÃO DO JULGADORSISTEMA ACUSATÓRIO.
I – Deve ser decretada a absolvição quando, em alegações finais do Ministério Público, houver pedido nesse sentido, pois, neste caso, haveria ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador.
II – O sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e se realiza validade diante da atuação do defensor.
III – Afirma-se que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório.
IV – A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público. (TJ/MG, 5ª CC, RESE 1.0024.05.702576-9/001: rel. des. Alexandre Victor de Carvalho, j. em 13/10/2009).
No mesmo sentido foi o julgamento da apelação 1.0024.09.480666-8/001, pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 23/03/2010, de idêntica relatoria.
Como se percebe, o art. 385 do CPP é um dos tantos resquícios do sistema inquisitorial de processo penal brasileiro, herdado das Ordenações reinóis e do Código de Processo Criminal do Império.
Embora no HC 96.049/RS, o STF tenha afirmado que “Tendo sido a pena fixada no patamar mínimo cominado para o crime de roubo qualificado, não interesse de agir quanto ao eventual reconhecimento da ilegalidade da incidência de agravante não descrita na denúncia e da inconstitucionalidade do art. 385 do Código de Processo Penal” (HC 96049/RS, 1ª Turma, rel. min. Cármen Lúcia, j. em 4/11/2008), a Corte ainda não teve ocasião de debruçar-se adequadamente sobre o tema. Ali repetiu-se o decidido no HC 93.211/DF (rel. min. Eros Grau) sobre a possibilidade de condenação em agravante não requerida na denúncia. No caso relatado pela min. Cármen Lúcia, a situação era semelhante: debatia-se a segunda parte do art. 385 do CPP.
                 
Na AP 470/DF, as premissas estavam presentes, que a Procuradoria-Geral da República requereu a absolvição de alguns dos réus. Todavia, o STF, no longuíssimo acórdão de 8.405 páginas não trata uma vez do art. 385 do CPP. O tema, todavia, foi abordado en passant, por exemplo, pelo ministro Ricardo Lewandowski, que, em seu voto sobre o réu Luiz Gushiken, assim se posicionou: “Não obstante o pedido de absolvição pedido (sic) pelo Procurador-Geral da República, examinarei as condutas irrogadas ao réu, e o farei tendo em conta a necessidade de respeita o direito do acusado a um julgamento justo, sob o pálio do Direito“.
 
Mais pertinente, neste debate, é o vintenário HC 69.957/RJ (2ª Turma, rel. min. Néri da Silveira, j. 09/03/1993), no qual o STF decidiu que “A manifestação do MP, em alegações finais, não vincula o julgador, tal como sucede com o pedido de arquivamento de inquérito policial, nos termos e nos limites do art. 28 do CPP”. E . É apenas este o fundamento do julgado. Naquela ocasião, o Ministério Público pediu a absolvição do réu e, após a sentença absolutória, outro membro do Parquet interpôs apelação criminal. Na verdade, foi este o debate de fundo no referido habeas corpus, tendo sido esquálido o exame do art. 385 do CPP.
 
Talvez por isto mesmo haja uma corrente doutrinária que diverge da posição da Suprema Corte. Para Cândido Furtado de Maia Neto, “Quando o juiz de direito discorda da posição ministerial sobre a absolvição, torna-se parcial e assume automaticamente a figura de acusador, que não é admissível no direito acusatório moderno. No passado hediondo, o próprio juiz investigava, tinha o similar papel desempenhado pela polícia, até torturava em nome da justiça e dos interesses do Altar e da Coroa, aplicava penas cruéis, infamantes, degradantes e desumanas, na época dos Tribunais do Santo Ofício […]”. Sempre em nome da lei.
 
Não cabe ao órgão julgador cumprir as funções do órgão acusador. José Frederico Marques leciona que “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal tão-somente da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não , em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. […] O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”
 
O juiz e professor Alexandre Morais da Rosa, na mesma linha, pontua que “Só quem pensa de maneira inquisitória” afirma que o juiz pode condenar mesmo diante de pedido de absolvição por parte do MP. Diz ele: “No processo democrático não se pode aceitar que o julgador se arvore em condenar. pedido de absolvição, por óbvio democrático, descabe condenação”.
 
Alega-se ainda que o princípio do livre convencimento motivado autorizaria o julgamento condenatório em tal circunstância. Este princípio não se sobrepõe ao princípio acusatório segundo o qual as funções de acusar e julgar são distintas e incomunicáveis. Ademais, não podemos esquecer o postulado segundo o qual não juiz sem autor (nemo iudex sine actore). A não ser assim, o primeiro princípio poderia ser invocado também na jurisdição cível – no qual vigora com maior forçapara impor a continuidade de ações civis mesmo quando houvesse pedido de desistência por uma das partes ou quando ambas transacionassem.
 
O tal livre convencimento motivado é chamado por Lênio Streck de “uma contradição filosófica”, sem respaldo algum no artigo 93, inciso IX, da Constituição. Diz ele: “Ora, de que adianta termos atingido a democracia se, na hora da decisão de um processo criminal, em que estão envolvidos os mais altos direitos humanos fundamentais, o decisor pode apreciar livremente a prova, ‘buscando a verdade que ele considera a ‘real’?”.
 
Mais do que ao ativismo judicial, tal opção do julgador evidentemente leva ao autoritarismo, porque ele se sente capaz de conhecer a “verdade” e isto, sem dúvida, não é outra coisa senão um juízo inquisitivo. Como ensina Ferrajoli, o sistema inquisitorial caracteriza-se por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad“. Em outras palavras, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga“.
 
Quanto a este ponto, o STF teve ocasião de rechaçar a figura do juiz investigador do fato tido por criminoso, quando considerou inconstitucional em parte o art. 3º da Lei 9.034/95. Trecho da ementa da ADIN 1570/DF (rel. min. Maurício Correa, j. em 12/02/2004) toca no objeto deste post, pois a Corte considerou haver ali “comprometimento do princípio da imparcialidade e consequente violação ao devido processo legal”. A situação é a mesma do ponto de vista da neutralidade que se exige do julgador.
No seu voto na referida ação direta, o ministro Sepúlveda Pertence repudiou suposta identidade entre as linhas evolutivas do processo civil e do processo criminal, ao afirmar: “No processo penal, com todas as vênias, a evolução histórica deu-se em sentido inverso. O que se tinha outrora era o juiz-inquisidor: ‘todo juiz é procurador’, lembrou o ministro Celso de Mello. E, paulatinamente, se foi liberando o juiz da função de acusar e, consequentemente, da colheita preliminar de provas, para resguardar-lhe a condição de terceiro imparcial”.
 
Diante do que foi dito, um julgamento condenatório sem prévia e contínua acusação é nulo: nullum iudicium sine accusatione. Este é, aliás, um dos axiomas garantistas de Ferrajoli. Não basta a este modelo que tenha havido acusação primária (na denúncia). É preciso que o Ministério Público continue a acusar o réu até o final, pois é sua a decisão de iniciar o procedimento e de nele prosseguir.
 
Um tal julgamento é também ilegítimo porque a falta de pedido de condenação nas alegações finais abala uma das condições da ação, o interesse de agir, não podendo a pretensão punitiva do Estado vingar em juízo, sem tal requisito e sem sustentação por seu autor privativo (art. 129, I, CF).
Como se viu, na ação penal privada, a solução é a extinção da punibilidade por perempção. Na ação penal pública, a saída para o magistrado que pretende (é disso que se trata) condenar o réu e discorda da posição final do órgão de acusação (que pedira a absolvição) é invocar o art. 28 do CPP, analogicamentetal como ocorre no art. 384, §1º, do CPP (mutatio libelli) –, para aguardar a posição do órgão revisional do Ministério Público (art. 129, I, CF). Outra saída constitucional (art. 5º, LIX, CF) seria a facilitação da acusação particular, mediante a assunção do polo ativo pela vítima, de forma consecutiva, tal como se na ação penal privada subsidiária da pública.
 
Conforme os itens 56 e 57 da Nota Explicativa à Declaração de Bordéus, de 8 de dezembro de 2009 (Recomendação Conjunta do Conselho Consultivo de Juízes Europeus e do Conselho Consultivo dos Procuradores Europeus ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa):
“56. Quando uma instrução imparcial estabeleceu que as acusações não têm fundamento, procurador não deve iniciar ou prosseguir a ação penal mas por fim ao procedimento.
 
57. Globalmente, durante o procedimento penal, o juiz e o Ministério Público exercem as suas respectivas funções com vista a garantir o desenrolar equitativo do processo penal. O juiz vela pelo respeito da legalidade das provas reunidas pelo Ministério Público ou pelas autoridades de investigação e ao abandono do procedimento penal quando as provas são insuficientes ou ilegais”.
O item 12 da Declaração de Bordéus é no mesmo sentido: “Quando uma investigação imparcial conclui com base das provas disponíveis que a acusação não é fundada, o procurador não deve intentar nem prosseguir a ação penal”.
 
O item 27 da Recomendação Rec (2000)19 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa também estatui que “O MP não deve iniciar ou prosseguir o procedimento criminal quando em instrução imparcial se revelar que a acusação é infundada”.
 
Neste diapasão, vale lembrar que a Recomendação Rec (2000)19 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa enfatiza particularmente a obrigação dos Estados-membros de tomar “todas as medidas para que o estatuto legal, a competência e o papel processual dos membros do Ministério Público sejam definidos pela lei de modo que não seja possível alimentar nenhuma dúvida legitima quanto à independência e à imparcialidade dos juízes. Os Estados devem, em particular, garantir que uma pessoa não possa desempenhar, ao mesmo tempo, as funções de membro do MP e de juiz” (item 17).
 
Todos esses documentos internacionais reforçam o modelo acusatório de processo penal – e nos servem de norte, revelando a inconstitucionalidade e a inconvencionalidade do art. 385 do CPP (o código do Estado Novo), que ainda permite que o juiz exerça o papel de Ministério Público (na função acusatória) quando sustenta de ofício uma pretensão condenatória e a acolhe unilateralmente em detrimento do réu, condenando-o, em nome de uma suposta “verdade” real, a ele revelada.
 
Conforme Sérgio Demoro Hamilton, “Não para entender a histórica desconfiança do legislador para com o Ministério Público, tão empenhado quanto o juiz na realização de um processo justo“. Os equívocos e eventuais conluios do órgão acusatório resolvem-se dentro da ordem constitucional e pelos mecanismos disciplinares e de controle externo. Se o Ministério Público retirar a acusação (isto é, dela desistir, a despeito do art. 42 do mesmo CPP) ou pedir a absolvição do réu, o juiz deve aplicar o art. 28 do CPP, para o controle hierárquico dessa decisão de não prosseguir na acusação. Este, aliás, é o sentido do item 34 da Recomendação Rec (2000)19 do COE:
 
“34. As partes interessadas no processo, logo que como tal reconhecidas ou identificáveis, em particular as vítimas, devem poder impugnar as decisões do MP de não proceder criminalmente; uma tal impugnação pode fazer-se no próprio processo depois de fiscalização hierárquica, quer através de controle judicial, quer autorizando as partes a deduzir acusação particular”.
Em nenhum caso, porém, é tolerável a assunção da acusação pelo juiz sentenciante, pois se não falta interesse de agir, faltará o acusador, figura essencial ao sistema processual implantado no Brasil em 1988. A existência do promotor natural, lembremos, é uma garantia do acusado. Por isto, Salo de Carvalho afirma que “a radical separação entre juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos do modelo acusatório“. No entanto, no Brasil, há quem diga que o juiz criminal teria amplos poderes instrutórios no processo penal. Some-se esta suposta faculdade à competência de condenar sem final pedido condenatório da parte e veremos que é inquestionável o rompimento dos princípios do promotor natural, do juiz natural e da imparcialidade do julgador, com exercício indevido e simultâneo de papeis que a Constituição reservou a órgãos distintos, como fator de garantia do devido processo legal. Torna-se inevitável o “comprometimento psicológico” do julgador, como percebe Geraldo Prado.
Se o Ministério Público pede a absolvição do réu, o juiz deve extinguir a ação penal ou absolvê-lo, não porque se sujeite ao pedido do Parquet, mas porque, não havendo acusação, não pode o magistrado agir de ofício para sustentar pretensão punitiva que deixou de ser veiculada em juízo pelo seu titular.
“Quem tiver um juiz por acusador, precisa de Deus como defensor“, é uma máxima sempre repetida. Não há jurisdição sem ação, dado que o ofício judicante é limitado pelo princípio da inércia. Suprimido o motor acusatório, desaparecem as condições para alteração do estado de inocência do acusado. No processo penal, é do Ministério Público o ônus de provar a culpabilidade do réu. Se a instituição não o fez ou acredita não tê-lo feito a contento, deve pedir a absolvição do réu, não cabendo ao juiz substituir esses juízos de insuficiência de provas ou de inocência, reconhecidos pelo titular da pretensão punitiva, por um decreto condenatório. Não seria este um caso de aplicação do princípio in dubio pro reo?
Enfim, é evidente a não recepção do art. 385 do CPP pela Constituição de 1988, carta que adotou o modelo acusatório de processo penal. Sua aplicação no Brasil equivale a uma condenação sem acusação, prática judicial inquisitorial, violadora do dever de imparcialidade judicial e do devido processo legal. O juiz criminal não é um assistente de acusação, que se levanta contra o réu quando o Ministério Público claudica ou se convence de sua inocência. O juiz criminal é um garantidor; jamais um acusador.

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