Direito Processual penal

A pena do réu colaborador

Estava disposto a contar o que sabia sobre os planos de seu amigo Bouhlel para o dia seguinte.

28/12/2016 às 09h17, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

Abdul Baith entrou no comissariado de Polícia de Nice na tarde de 13 de julho de 2016. Estava disposto a contar o que sabia sobre os planos de seu amigo Bouhlel para o dia seguinte.

Em 14 de julho, dia em que a França comemora a Queda da Bastilha, a Promemade des Anglais em Nice foi banhada de sangue. Incontáveis pedestres, entre moradores locais e turistas, foram atropelados por um caminhão dirigido por Mohamed Lahouaiej Bouhlel, supostamente afiliado ao Estado Islâmico (ISIS). Cerca de 84 vítimas perderam suas vidas e centenas de pessoas foram feridas.

O atentado terrorista é real. Ocorreu neste sangrento ano de 2016 na cidade francesa de Nice, mas o colaborador “Abdul Baith” nunca existiu.

Que pena mereceria Abdul Baith, ele que é membro de uma organização terrorista e que ajudou a planejar o terrível atentado de Nice?

Que pena ele mereceria se suas informações houvessem sido capazes de salvar a vida de 84 pessoas e livrar outras tantas de sofrer lesões corporais gravíssimas?

Infelizmente, não houve um Abdul Baith naquele 14 de julho. A alegoria serve para examinarmos o tema das penas que resultam de acordos de colaboração premiada. Qual o produto final para o bem comum?

No Brasil, as penas aplicadas a réus colaboradores são “baixas”? É um debate atual e interessante devido a certos aspectos jurídicos e por revelar um traço da psique de um segmento da doutrina jurídica brasileira.

Muitos dos que se queixam das penas alegadamente “baixas” da colaboração premiada são aqueles que sempre defenderam a intervenção mínima do direito penal, a fixação de reprimendas perto da pena mínima, as sanções alternativas, ou, até mesmo, o abolicionismo penal. Alguns estão entre os que sustentam a possibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal, por decisão judicial, em qualquer caso. São antipenalistas, declaram-se agnósticos, mas não tanto…
O que é uma pena “baixa”? Ou a pergunta correta seria: qual a pena “justa”?

Os critérios dosimétricos de nossa lei são complexos e nunca foi fácil encontrar a pena “correta” ou a pena “devida”, nos casos criminais ordinários. Livros foram escritos sobre isto. Recursos aos borbotões são interpostos todos os anos com este foco. Que pena merece o estuprador condenado? A pena aplicada ao homicida foi justa e adequada?

Ninguém cogita de consenso nesses números, que ficam ainda mais embaralhados quando vemos a falta de senso nos decretos de indulto.

Ninguém ignora que, mais de três décadas depois, persistem perplexidades na interpretação dos critérios de individualização de pena adotados pela parte geral do Código Penal em 1984.

Num instituto novo para o Brasil como a colaboração premiada – que foi construída a partir de 2003 mas se consolidou apenas em 2013 -, esses mesmos desafios e outras incertezas estão presentes.

Alguns países têm regras rígidas e escalonadas, descritas em lei, para a aplicação da pena, deixando pouco espaço de individualização ao juiz. Essas “sentencing guidelines” descem a detalhes e reduzem a margem de contestação dos patamares determinados para as reprimendas, sejam elas negociadas ou não.

Noutros tantos países, vemos premissas mais largas, algumas das quais subjetivas e intervalos penais mais amplos. O papel do juiz sobressai e, nas negociações, membros do MP e advogados têm um espaço dialógico mais amplo.

Quem estuda o assunto para além dos preconceitos (a)teóricos – que não cabem no debate jurídico pretensamente científico – percebe as virtudes e defeitos do modelo dosimétrico hoje vigente, não só no campo do processo penal contraditório, mas também no âmbito do processo penal negocial.

No que diz respeito à justiça penal pactuada, não centremos os olhos apenas na colaboração premiada, meio especial de obtenção de provas que provoca calafrios em alguns e, por causa de preconceitos, chegam a conclusões equivocadas. Olhemos também para os institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995, que introduziu no Brasil a suspensão condicional do processo e, sobretudo, a transação penal, inaugurando os acordos penais. As penas negociadas nessas audiências preliminares acaso são justas, suficientes, proporcionais, adequadas? Cestas básicas bastam? Alguns creem que sim; outros dirão que há desvios na prática dos Juizados Especiais.

Fica fácil perceber que o problema não está na individualização das penas da colaboração premiada, mas nos métodos dosimétricos consagrados no Brasil, aqueles que usualmente são chancelados pela doutrina e pelos tribunais, e que buscam alcançar certos valores legítimos e necessários, entre eles, a redução do encarceramento de acusados, a redução da carga processual do Judiciário e o atendimento aos interesses das vítimas.

No contexto da colaboração premiada, é preciso adicionar pelo menos mais um elemento de checagem ou verificação da sua utilidade e adequação a um programa de Justiça criminal. Qualquer que seja a pena resultante do acordo para o colaborador, não se pode isolá-la dos resultados obtidos em função da colaboração. A mensuração do valor da colaboração dependerá de se saber a extensão ou a amplitude desses resultados no campo da prova, da recuperação de ativos, da proteção dos interesses das vítimas, assim como a capacidade de revelação dos agentes que concorreram para aquele crime ou para outros crimes igualmente graves.

Nesta linha, a correção ou não da redução de pena em tal ou qual quantitativo não pode ser aferida apenas por critérios matemáticos, a partir de certas grandezas numéricas, ou por um mero jogo de frações. O esforço de checagem da proporcionalidade da redução pode e deve ter em conta dimensões subjetivas e objetivas internas e externas ao processo penal a que responde o colaborador. O que se alcançou com sua assistência?

Neste cenário, a pena máxima – não a do hiato legal mas a processualmente possível naquela ação penal – deverá ser decotada a partir de expectativas probatórias que podem, ou não, se confirmar.

Não por outro motivo o art. 4º, §1º da Lei 12.850/2013 estabelece critérios próprios de individualização:

§1º Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.

Assim, a redução “devida” ao colaborador será tanto maior quanto maior for a capacidade probatória ou reparatória efetivamente alcançada pelo Estado em função das provas que o colaborador aportar ou que ele apontar, no necessário procedimento de corroboração a cargo do órgão de acusação, imprescindível para a superação da parêmia “testis unus testis nullius”.

Como se evidencia, a dosimetria sofre abalo e pressões de eventos futuros e incertos, tema para o qual a legislação brasileira (ainda) não tem resposta. Oxalá a praxe forense e os tribunais nos possam valer.

Além das penas privativas de liberdade ajustadas em procedimentos colaborativos, é preciso ter em consideração as multas e reparações acordadas, o confisco patrimonial, a perda da primariedade e as interdições para o exercício de funções ou atividades, como se vê no art. 7º, II, da Lei 9.613/1998:

“II – a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada.”

A causa especial de redução de pena na colaboração pode diminuir a sanção legalmente “devida” em até ⅔ (dois terços). O benefício prometido ao colaborador deve compensar o “waiver”, isto é, tem de recompensar a grave decisão – que deve ser sempre voluntária e tecnicamente assistida – de renunciar-se ao direito ao silêncio, com disposição de cooperar plenamente. A colaboração trará ônus e rótulos extrapenais ao réu, é algo de que temos de lembrar.

Tampouco se pode esquecer que a pena do colaborador que cooperar de forma substancial pode ser “pena alguma”, no perdão judicial, ou, mais do que isto, pode ser “processo penal algum”, como ocorre nos acordos de imunidade. Tanto num quanto no outro caso, vê-se que o intervalo de trabalho do juiz ou o campo de negociação das partes não se situa entre os limites máximo e mínimo do preceito secundário do crime X ou Y. Na colaboração premiada, as escalas “penais”, melhor dizendo, os melhores benefícios alcançáveis pelo colaborador são o perdão judicial (pena alguma) ou o não-processo (arquivamento por acordo de imunidade).

Esses são os marcos que se deve ter em vista, muito aquém da pena mínima estipulada abstratamente pelo legislador para esta ou aquela infração penal. Seria esta a tão sonhada “pena abaixo do mínimo legal” sonhada por doutrinadores brasileiros?

Em março de 2009, o Plenário do STF negou provimento ao Recurso Extraordinário RE 597270/RS que pretendia a fixação de pena abaixo do mínimo legal. A tese rechaçada pelo STF também é recusada pela Súmula 231 do STJ, segundo a qual “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.”

Pois bem. Na colaboração premiada, uma circunstância especial pode levar à aplicação de uma sanção muito abaixo do mínimo legal previsto no preceito secundário da norma incriminadora, reduzindo a reprimenda para além dos ⅔ (dois terços), uma vez que o verdadeiro “mínimo legal” é pena nenhuma, naqueles casos de colaboração substancial com o Ministério Público.

Talvez a solução para as inquietações doutrinárias a respeito do quantum da pena do colaborador resida na adoção de regimes especiais de cumprimento das penas acordadas, que tenham em mira a adesão do colaborador ao compromisso colaborativo estabelecido no acordo escrito, ajuste este que tem a produtividade ou efetividade da colaboração como balizas de proporcionalidade.

Só assim nesta checagem externa, a partir dos efeitos ou resultados do acordo, é que temos condições de aferir se o quantum de cumprimento efetivo da pena foi suficiente ou não, e se a pena “líquida” foi alta ou “baixa”.

Com a colaboração premiada, alcançamos retribuição/prevenção, reparação e confisco?

A diferença disto tudo para um acordo de “impunidade”, estes tão comodamente tradicionais no Brasil, é estratosférica. Na colaboração premiada, ainda que com penas supostamente “baixas”, os culpados são punidos e outros tantos valores da Justiça penal são alcançados.
Por outro lado, naqueles usuais ajustes de impunidade, só o culpado (o culpado impune) se dá bem.

Que pena Abdul Baith mereceria?  

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