Direito Penal

O tigre de Cascavel

Na fábula, filmada por Ang Lee e baseada no romance de Yann Martel, estão em jogo coragem, medo, força, otimismo e sobrevivência.

18/08/2014 às 10h43, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

No premiado “As aventuras de Pi” (Life of Pi) um menino náufrago viaja pelo Oceano Pacífico num bote salva-vidas com um tigre de Bengala chamado Richard Parker. Na fábula, filmada por Ang Lee e baseada no romance de Yann Martel, estão em jogo coragem, medo, força, otimismo e sobrevivência.

Em 30/jul, na vida real, outro menino brincava no zoo de Cascavel com um tigre enjaulado, chamado Hu. Espaços melancólicos como os zoológicos deveriam ser extintos. A vida de animais em cativeiro é muitas vezes cruel e quase sempre degradante. Mesmo encerrado num cubículo, Hu exibiu seu instinto e sua voracidade.

E, por isto, esta história não terminou bem. O braço direito do menino foi abocanhado e dilacerado pelo tigre. Vídeos e relatos colhidos pela imprensa mostram que o garoto – que minutos antes aproximara-se perigosamente de um leão para alimentá-lo – invadiu a área de contenção, entre a cerca externa e a jaula do tigre, para brincar com o animal, e praticamente ofereceu seu braço por entre as grades.

Para o tigre, o menino era uma caça. Não vou abrir link para o entristecedor vídeo, mas, aparentemente, a omissão do pai do garoto traçou o destino de seu filho: braço inteiro amputado. Graças aos socorristas e aos médicos do hospital universitário, a criança sobreviveu.

Não é meu papel julgar o pai dessa criança. Caberá à Polícia Civil investigar o fato e ao Ministério Público do Estado do Paraná decidir se o acusará de algum crime. Só então um juiz togado dirá o direito.

O certo (errado) é que uma cerca foi ultrapassada. A sinalização de perigo foi desconsiderada. O bom senso e os seguranças não apareceram. O menino, que estava no zoo na companhia de seu pai, invadiu a área proibida e passou a interagir com o animal. Tocou-o. Escalou as grades. Correu diante da fera, como uma presa. Pessoas presentes filmaram a cena, mas não intervieram. Pergunto-me a razão e não sei dizer. Os vigias do parque não deram as caras. Ao que parece, o pai que estava ali nada fez até o momento do ataque. Devia ter rugido com o filho. Quem viu o menino, não o impediu. Quem podia intervir, não o fez.

Se esses eventos realmente assim se deram, há que se cogitar da responsabilidade penal por omissão. Repito. Não é meu objetivo tirar conclusões precipitadas sobre essa tragédia humana. Apenas quero refletir sobre uma hipótese penal. Se tudo ocorrer assim num caso X, o artigo 13 do CP aparecerá em cena:

“O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”
Já o §2º do art. 13 cuida da relevância causal da omissão, estabelecendo que esta é “penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado“. A mesma cláusula legal esclarece que “o dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância“. Assim, quem, por lei, tem tal dever é considerado “garantidor” ou garante. Se essa pessoa se omite, responde pelo resultado que sua omissão causou. Os requisitos dos crimes omissivos impróprios são:

dever de agir para evitar o resultado
possibilidade de agir para evitar o resultado
evitabilidade do resultado
consciência do papel de garantidor
A obrigação legal de proteção, cuidado e vigilância que os pais têm para com os seus filhos menores está muito bem delineada nos artigos 1583 e 1634 do Código Civil (poder familiar) e no art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990). Transcrevo este último:

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Se o suspeito conhecia sua condição de garantidor e decidiu abster-se de agir, responde por dolo. Ou seja, caso o garante saiba que deve evitar a lesão ao bem jurídico e não o faz por vontade própria, mesmo não querendo o resultado, será punido por isto. Diante de caso semelhante, havendo dolo direto ou eventual, o Ministério Público poderá denunciar o omitente por lesão corporal qualificada (“lesão gravíssima”), prevista no artigo 129, §2º, inciso III, do CP, já que da lesão resultou perda de membro. Ou seja, ao se omitir, o garantidor (aquele que devia e podia agir) “causou” o resultado que ele poderia ter evitado.

Neste caso, tal e qual o tigre, o omitente seria “enjaulado” por 2 a 8 anos de reclusão. A omissão é devoradora.

Tal crime, de ação penal pública incondicionada, seria de competência do juiz de Direito. Os seguranças do zoo poderiam ser responsabilizados. Hipoteticamente sim, porque também são garantidores.

Por outro lado, se a conduta do omitente for tida como culposa (art. 129, §6º, CP), por negligência, em teoria poderá ele beneficiar-se do perdão judicial (art. 129, §8º, CP), o que resultaria na extinção de sua punibilidade (art. 107, IX, CP). Isto pode ocorrer por ocasião da sentença de absolvição sumária, prevista no art. 397, inciso IV, do CPP. A exoneração do autor pode ainda ser antecipada pelo Ministério Público, mediante promoção de arquivamento, justificada pela falta de interesse de agir (art. 28 do CPP). Sobre esta última possibilidade, leia o post “Perdão pelas lágrimas“. O delito de lesão corporal culposa é de ação pública condicionada à representação (artigo 88 da Lei 9.099/1995). A mãe faria a representação (art. 24 do CPP) ao Ministério Público?

Ao menino faltou medo. Ao pai, juízo. Aos presentes, antecipação à tragédia. Não sei, porém, o que virá. Isto aqui não é tribuna de acusação; é só um espaço para um exercício teórico. Hu não era um “tigre de papel”; era uma fera aprisionada em Cascavel. Por isto, não custa tomar o episódio como exemplo da irracionalidade dos animais. Falo dos seres humanos. 

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